Entrevista com o fazedor de mangás de sangue quente! Ele produz os mangás que enlouquecem a garotada!!

Parte 1

São Masami Kurumada

    Este mês, veicularemos a entrevista com o mestre Masami Kurumada, que também possui uma legião de admiradoras secretas (ou não seriam tão secretas assim?…) entre as mulheres por ser o autor de obras apologéticas como Ring ni Kakero, Fūma no Kojirō e Saint Seiya!

   “É um boa-praça!” — exatamente como o editor da Jump nos havia alertado, o mestre Kurumada veio de carro para nos receber na estação e se mostrou uma pessoa extremamente agradável (é claro, não que houvesse qualquer motivo para imaginarmos que ele seria diferente).

   Antes que os assistentes pudessem se reunir para dar início aos trabalhos, nós visitamos o estúdio do mestre Kurumada por mais de 2 horas e ouvimos causos divertidíssimos, começando pelas histórias secretas das obras e passando por tópicos como a filosofia de vida dos homens.

June: Saint Seiya virou anime, não é? É a primeira obra do senhor a ser convertida em acetato. Como o senhor está se sentindo?

Kurumada: Como devem imaginar, estou feliz. No que tange aos trabalhos, desde antigamente, a partir da época de Ring ni Kakero, já havia uma incrível reação de leitores que clamavam pela transposição, não é verdade? As revistas especializadas em anime frequentemente realizam essas pesquisas, não é? “Os 10 mangás que mais queremos que virem anime” e coisas do gênero… Apesar disso, mesmo figurando em primeiro lugar nessas enquetes, parece que os animes realmente não saem do papel se não houver patrocinadores. Desta vez, a Bandai entrou em contato querendo lançar justamente as armaduras como brinquedos, e parece que a empresa estava determinada, já que as conversas se iniciaram cerca de meio ano após o início da publicação.

Extasiado, o mestre Kurumada se junta ao plantel da Tōei para confeccionar as células que foram distribuídas pela Shōnen Jump na estreia do anime

June: Foi rápido, não? Virou anime logo após o lançamento do primeiro encadernado…

Kurumada: Na verdade, como fui contatado em junho, foi antes de os quadrinhos serem lançados. É que a trama ainda não está consolidada. Com apenas 6 meses, não dá para saber que rumo a história tomará… (Risos.) Sobretudo no que se refere ao roteiro e configurações da história, eles os produzem cedo demais. Com uns 3 meses de antecedência. É por isso que a história logo acaba alcançando a obra-mãe. O que eles estão fazendo agora é completamente original. Apesar de, aparentemente, também não haver muita vontade de fazer aquilo.

Teaser veiculado antes da estreia do anime

June: Da parte deles?

Kurumada: Sim. O sabor da obra-base é imprescindível, não é verdade? Ao que parece, no caso dos episódios originais do anime, eles não conseguem a aderência do público atual… Em outras palavras, existe o fato de os telespectadores quererem ver as coisas que eles conheceram [no mangá]. Ao ler o mangá, eles ponderam como determinada cena ficará no anime… É por isso que, ao trazer uma história totalmente diferente, eles se perguntam: “Mas que diabo é isso?!”

Os leitores da Shōnen Jump são tradicionalmente refratários a personagens e sagas exclusivas das animações. Os leitores, de fato, desejam ver nas telas as cenas que acompanharam nos mangás. Não é nenhuma surpresa que personagens espalhafatosos como Docrates, Geist e os cavaleiros-fantasmas tenham causado estranheza

June: No volume 13 da Shōnen Jump, o senhor escreveu que o Misty vai aparecer ou algo do tipo. Isso significa que retornaremos à “Saga das Armaduras de Prata”?

Kurumada: Isso mesmo. Eles agora estão produzindo esses episódios originais por terem alcançado a cronologia do mangá. Mas já não é hora de retornar à trilha?… Então, o estoque logo voltará a ser insuficiente. (Risos.) Mas o diabo é que o giro da animação é mais rápido. Eles acabam fazendo vários capítulos juntos. Não é assim que ela segue?…

Na Jump nº 13 de 1987, comercializada no dia 24 de fevereiro, o mestre Kurumada avisou os leitores do retorno do anime à cronologia do mangá. Após a aparição de Docrates, Geist, do Cavaleiro de Cristal e do Cavaleiro do Calor Abrasante, Misty estrearia no episódio 23, veiculado no dia 28 de março de 87

June: No que tange aos planos que o senhor tinha ao iniciar a publicação do mangá de Saint Seiya… ou melhor, quais eram os objetivos do senhor?

Kurumada: Intenção inicial, planos… eu não tinha qualquer coisa do tipo. Eu só pensava que o trabalho precisava ficar famoso. Antes eu estava fazendo um trabalho chamado Otokozaka, mas creio que ele falhou miseravelmente em atingir esse nível. Especialmente hoje em dia, quando um número extraordinário de obras da Jump está sendo transformado em anime… Meu trabalho anterior acabou terminando no capítulo 30, mas poderia dizer que isso se tornou um bom incentivo?… O que estou fazendo não mudou praticamente nada em relação ao que fazia antes, mas, na obra anterior, além de não aparecerem técnicas, eles não vestiam armaduras; apenas uniformes escolares… Acho que a chamada pegada fashion é muito importante; foi nesse sentido que bolei as armaduras e conceitos do tipo.

A despeito das grandes expectativas do mestre Kurumada, Otokozaka, a versão kurumadiana de Otoko Ippiki Gaki Daishō, não agradou aos leitores da Jump

June: Não é algo que se aplica especialmente a obras de ficção científica e afins?

Kurumada: Sim, sim. Embora eu não saiba de que maneira está sendo interpretado, mesmo que pensem frequentemente que é o “mangá de ficção científica do Kurumada”, trata-se de algo totalmente diferente. Na verdade, acho que os leitores compreendem que não se trata de um mangá de ficção científica. É o que chamam de “mangá de sangue quente”. Eu meio que fui introduzindo esse complemento fashion num mangá de sangue quente. Só que, agora com Saint Seiya, parece que foi um pouco difícil assimilar isso no começo, não é mesmo? Pouco tempo atrás, quando me encontrei com o editor adjunto da Newtype, isto também foi um pouco comentado, mas, no início, como imaginava que fosse um mangá de ficção científica, ele realmente se perguntava se eu não realizaria a trama com algo caindo do espaço… Portanto, creio que agora os leitores também finalmente vêm compreendendo o cerne da história… Também no one-shot de agora, o passado do cavaleiro Ikki… Cada um deles ainda tem bastante coisa desconhecida, não? Ainda que eu esteja pensando se vou introduzindo essas especificidades também…

A princípio, as vestimentas e o pano de fundo astrológico foram interpretados como elementos característicos de obras de ficção científica

June: O cotidiano dos outros — a exemplo do Shiryu — em suas ilhas apareceu um pouco, mas não houve nem sinal do dia a dia do Shun de Andrômeda…

Kurumada: Sim, sim, sim! Também falamos disso. Dos 100 meninos, 90 estão desaparecidos, mas não significa que estejam mortos. E, entre eles, como diabo um pacifista tão fracote como o Shun sobreviveu e ficou forte daquele jeito?… Mas, ao que parece, os leitores ainda não pensam no fato de ele ter ficado forte. Em outras palavras, parece que eles suspeitam que o Andrômeda não seja capaz de vencer os inimigos sem usar a corrente.

A técnica Tempestade Nebulosa seria concebida pelo mestre Kurumada a fim de provar que Shun não precisava de sua corrente para combater

“Antes de chamar de trabalho, eu gosto de desenhar mangás.”

June: Algumas pessoas fizeram interpretações interessantes desse elemento. Apesar de todo o pessoal derrotar os oponentes com uma técnica, com um soco, apenas o Andrômeda utiliza uma corrente. Então, essas pessoas dizem que o fato de ele usar uma arma é um aspecto feminino. Creio que não é algo que o senhor tenha feito de forma muito consciente…

Os 10 volumes do monumental título “Fūma no Kojirō”, que mostra a transição da batalha ninja dos clãs Fūma e Yasha para a guerra de espadas sagradas com o desconhecido Caos

Kurumada: Sim. Também fui ajustando as técnicas em função de cada constelação. O Shiryu tem uma técnica similar a um dragão se levantando por ser da constelação de Dragão e por aí vai. É meio que uma técnica que seja pertinente a uma constelação, sabe? No caso do Hyoga, chamam de “Pó de Diamante” no Polo Norte… Eu ouvi pelo rádio que é tão frio que os cristais de neve são visíveis durante a ocorrência. Quanto ao Andrômeda, me pergunto se as técnicas não acabaram atreladas a correntes por ele ter o nome da antiga princesa que foi acorrentada.

Apesar das mirabolantes teorias acerca da influência da feminilidade de Shun sobre suas técnicas de luta, a corrente utilizada pelo Cavaleiro de Andrômeda provém do mito do sacrifício da princesa etíope

June: O senhor aplicou as constelações após a concepção dos personagens, ou pensou nos personagens depois que as constelações já existiam?

Kurumada: Hum, as constelações vêm mesmo em primeiro lugar?… Embora se diga que existem 88 constelações, as que posso utilizar não são tantas assim, sabe? Peguemos como exemplos constelações como a de Microscópio… (Risos.)

June: Como a constelação de Taça… (Risos.)

Kurumada: É por isso que, na maior parte das vezes, talvez eu tenha começado fazendo uma checagem inicial das constelações utilizáveis e depois tenha inserido os personagens nelas.

Além de contar com o valioso auxílio dos assistentes — sobretudo do criativo Shōji Nakata —, o mestre Kurumada também se valeu das ideias dos leitores para conceber o design das armaduras

June: Os elementos da obra, como personagens e configurações afins, já estavam praticamente prontos desde o início?

Kurumada: Não, não estavam prontos.

June: Então, são mesmo construídos à medida que a obra avança?

Kurumada: Sim. Creio que, geralmente, é assim na maioria das vezes.

June: O final está decidido?

Kurumada: Não, a conclusão não está definida. (Risos.)

June: Então, o senhor não define o encerramento e, a despeito das múltiplas rotas, se dirige a essa conclusão na reta final…

Kurumada: Sim, também deve haver pessoas assim, mas, no meu caso, digo: “A próxima semana a Deus pertence”. (Risos.)

June: É no fio da navalha… Então, a revelação de que os 100 cavaleiros têm o mesmo pai…

Kurumada: Aquilo também… foi a partir do meio do caminho. Ainda que eu não quisesse muito falar isto… (Risos.)

No mangá, os 100 órfãos são meios-irmãos, filhos do magnata Mitsumasa Kido. Com receio de que as crianças interpretassem as batalhas heroicas dos garotos como briguinhas entre irmãos e de que a temática da amizade tivesse seu impacto mitigado, o senhor Takao Koyama decidiu ignorar esse insólito desenvolvimento dos quadrinhos na trama do anime

June: Foi mesmo?! Aquilo deixou todo mundo chocado.

Kurumada: Sim. Em contrapartida, é por isso que agora virou um problema. Como vou fazer para aquele velho ter 100 filhos ao mesmo tempo?… (Risos.)

As cartas dos fãs estão coladas em toda a parede. O mestre Kurumada quer desenhar mangás que os leitores achem interessantes para sempre

June: As crianças são todas da mesma época, não é?

Kurumada: Isso mesmo. A questão é como conseguirei transmitir isso às crianças de uma forma fácil de compreender. Nos mitos, dizem que o personagem Zeus se transfigurava num cisne e, onde quer que encontrasse uma mulher bonita, dava nisso… Mesmo que, a priori, eu tenha pensado na configuração de várias e várias amantes de homens ricos [concubinas]… Mas, como a expressão de que ele possuía um monte de concubinas não é viável numa revista direcionada a meninos, então, meu pensamento é que, sabe-se lá o porquê, convenientemente, ele tinha uma legião de mulheres que amava e tal… (Risos.)

Assim, mesmo no caso da mãezinha do Hyoga, às vezes também me vem à mente a configuração na qual, pensando que, se continuasse a viver daquela maneira, o garoto acabaria se tornando extremamente mimado, ela poderia ter ficado no navio de propósito, optando por morrer a fim de extirpar a delicadeza do Hyoga… Podemos bolar várias ideias, não? Eu as seleciono de acordo com a forma como a obra avança… Novas ideias também me vêm à cabeça… Como as coisas progridem desse jeito, não sei bem o que acontecerá no futuro, sabe?

As circunstâncias do naufrágio que vitimou a mãe do Cisne são rapidamente explicadas no decorrer do implacável duelo de Hyoga e Ikki, na Jump nº 31 de 1986. O navio vai a pique antes que Natacha, que aparentemente priorizou a vida do filho, possa ser acudida. Como esses quadros do mangá não foram transpostos para a animação, os espectadores que não conhecem os quadrinhos também poderiam aventar o cruel cenário das divagações do mestre Kurumada

É que, dentro de um capítulo de luta, de fato, há ideias adjacentes. Como foi a estada do Andrômeda na ilha homônima e tal?… Entre outras coisas, como foi o encontro com o Mestre-Ancião na primeira vez que o Shiryu foi à China?… Embora haja várias histórias incidentais, quando se pretende fazer sucesso por quaisquer meios necessários, uma vez que você não pode prescindir de inserir batalhas, é bem impraticável introduzir essas histórias no interior das 19 páginas…

É por isso que, invariavelmente, existe o fator de que as partes desconhecidas acabam se avolumando. Em one-shots como este de agora, se for a respeito do Ikki, então, se introduz sutilmente a história do Ikki… Essa é a melhor forma, isto é, a mais fácil de entender. Creio que, com este especial, o grosso do passado do Ikki tenha sido entendido…

Um artifício para redimir Ikki e apresentar Shaka aos leitores, o capítulo especial foi publicado no mesmo volume do capítulo 61 do mangá, Apostando a Vida, que terminava com o Cavaleiro de Virgem se intrometendo no duelo de Aiolia com o Papa

June: É mesmo…

Kurumada: Contudo, eu realmente fui incapaz de mostrar o terrível episódio que levou o Ikki a mudar tanto, sabe… Talvez não seja possível mostrar a crueldade em revistas direcionadas a garotos. Os soldados que iam ao Vietnã frequentemente retornavam como pessoas completamente diferentes… Como no filme “O Franco-Atirador” [The Deer Hunter — 1978]…

O conceito de “transtorno de estresse pós-traumático” só foi cunhado após a Guerra do Vietnã. Até então, os sintomas —lembranças recorrentes dos eventos, alheamento afetivo e mudanças de personalidade — que acometiam os veteranos que testemunharam, tomaram parte ou foram vítimas das inomináveis atrocidades vivenciadas nos campos de batalha eram genericamente denominados “neuroses de guerra”. Obrigados por captores vietnamitas a participar de jogos sádicos de roleta-russa, os protagonistas do filme O Franco-Atirador lidam de maneira diversa com as consequências devastadoras da tortura. Incapaz de lidar com os traumas, o compassivo Nick (Christopher Walken) passa a participar voluntariamente de disputas mortais de roleta-russa, recorrendo ao uso de drogas injetáveis e perdendo todos os sentimentos humanos. Submetido a um treinamento desumano por Guilty, Ikki não apenas perdeu Esmeralda, seu alicerce emocional, mas também descobriu que o homem que mais abominava neste mundo era seu pai. No anime, Ikki tem flashbacks do passado traumático, deixando o diagnóstico do transtorno mais simples. O portador de estresse pós-traumático mais célebre da cultura popular é o atormentado Rambo, o icônico boina-verde interpretado por Sylvester Stallone

É por isso que esta ocasião também visa a dar ao Ikki a redenção que diz que, no mais profundo de seu coração, ele não mudou em relação a quem era antigamente. Nas revistas para meninos, a redenção é imprescindível. Mesmo no caso do Mitsumasa Kido, ele na verdade era uma boa pessoa. Se não fizesse de forma que ele deliberadamente se tornou um demônio em prol da justiça, Seiya, Shiryu e os demais não poderiam lutar, certo? Aquele “ah, então foi isso?!” é necessário.

Com a publicação dos encadernados da Jump Comics, o capítulo especial foi realocado no embate de Ikki contra a turma de Seiya. A história se tornou a continuação das reminiscências de Ikki após Hyoga refletir o Golpe-Fantasma de Fênix

June: O senso de justiça é necessário?…

Kurumada: Sim, sim. É por isso que, após a passagem de 1 ano, acho que a fundação, o cenário, finalmente está se empedernindo. Eu já disse isto antes, mas, na época das negociações para o anime, essa base era completamente inexistente. Então, é por isso que acabaram construindo os roteiros extremamente cedo. Ao que parece, o pessoal da Tōei está sofrendo com o fato de a série logo alcançar [os quadrinhos]. Ainda que eles tentem não atrapalhar o mangá enquanto fazem episódios originais em função do fato de a série ter alcançado a cronologia dos quadrinhos, vão inserindo uma novidade chocante toda semana, não é? Como o mangá ficou para trás, eles pensam “Oh, apenas os torne irmãos!” e coisas do tipo…(Risos.)

A verdadeira natureza do Grande Mestre só foi revelada em meio ao duelo de Seiya e Aiolia no Japão, na Shōnen Jump nº 11 de 1987, comercializada no dia 10 de fevereiro, 2 semanas antes desta entrevista. A estreia de Arles no anime ocorreu no dia 7 de fevereiro, mas a concepção do personagem provavelmente remonta a novembro ou dezembro de 1986. O senhor Takao Koyama foi compelido a evidenciar o caráter espúrio do Papa a fim de mostrar aos telespectadores que a turma de Seiya lutava pela justiça. Nos quadrinhos, os cavaleiros de bronze ainda eram vistos como criminosos por combater em prol de interesses pessoais. Após essa revelação do mangá, o senhor Yoshiyuki Suga resolveu encampar o desenvolvimento dos quadrinhos no episódio 41. Dessa forma, a roteirização da série ignorou a perversidade de Arles e o transformou no alter ego de Saga

Parece que o pessoal de lá está quebrando a cabeça com o Grande Mestre. No anime, o antigo Papa morreu e foi sucedido pelo irmão mais novo; contudo, no mangá, é diferente. O antigo Mestre está vivo e é como “o Médico e o Monstro” [Jekyll e Hyde]. Em outras palavras, como disse agora há pouco, as pessoas que são realmente más não têm salvação, certo? É por isso que, ao que parece, personagens com o lado bom e o lado ruim de “O Médico e o Monstro”, a exemplo do Anthony Perkins, de “Psicose”, acabam se tornando tipos totalmente diferentes em nível psicológico, não é? É que eu não quero muito acabar com a raça dele.

O mestre Kurumada se inspirou no clássico de Robert Louis Stevenson e no personagem Norman Bates, que padecia do transtorno dissociativo de personalidade, para conceber a personalidade do Papa

Esse Papa também é da constelação de Gêmeos. Ora, entre as armaduras de ouro, há uma constelação de Gêmeos, certo? É dito que possui um deus e um demônio… É por isso que estou pensando numa imagem que incorpore um anjo e um demônio na frente e no verso para a armadura, como nas estátuas de “asuras”… E, depois, há 12 modelos de armaduras de ouro, certo? Então, como dizem que havia um décimo terceiro membro entre os 12 apóstolos de Cristo, embora os cavaleiros dourados sejam 12 homens, ainda haveria um décimo terceiro cavaleiro dourado, um que foi rejeitado por Atena! Como se trata de um rebelde, também estou pensando na possibilidade de que ele seja o Grande Mestre. Tenho uma miríade de ideias. Como vou selecionando-as?…

A armadura de Gêmeos foi conspicuamente inspirada no inestimável Asura do Templo Kōfuku-ji, uma escultura concebida em 734 d.C.

June: Em contrapartida, dizem que acabamos com problemas quando há possibilidades de mais. No caso do comum, a exemplo de Ring ni Kakero, como o cenário se restringe ao interior do ringue e lugares do tipo quando estão boxeando e tal, poder-se-ia dizer que, em certo sentido, é mais fácil?…

Kurumada: Ali também não está particularmente restrito, não é? Já que, embora os ringues sejam o palco das lutas, pude amplificar o cenário ao lançar mão de elementos de campos como a mitologia, as escrituras cristãs e histórias afins. A Lei dos Corpos em Queda, de Galileu, e conceitos similares… (Risos.) Parece que poucos trabalhos entre os mangás de boxe coletaram tamanho volume de material.

Helga, o supergênio do time alemão, utiliza a Lei dos Corpos em Queda para decifrar o ponto fraco da técnica de Katori Ishimatsu

No início, realmente se tratava do treinamento excruciante dos boxeadores… Eu estava inserindo episódios como a história de que, sem sequer poder beber água, o Fighting Harada tentava tomar a água da privada, mas, como acabei entrando na seara das superlutas a partir do meio do trajeto, essa parte praticamente sumiu, e fiquei fazendo essas coisas de que falei agora, como a lei dos movimentos e a mitologia grega, sabe?

Mais conhecido como Fighting Harada, Masahiko Harada é um dos maiores boxeadores da história do boxe japonês. Ele se tornou uma celebridade ao vencer o lendário Éder Jofre em duas ocasiões, forçando o Galinho de Ouro a migrar para o peso-pena

June: Sendo assim, no caso de Saint Seiya, a despeito da natureza ardente ostentada pela supracitada Ring ni Kakero, é como se a obra já tivesse começado a partir das superlutas, suprimindo de uma só vez o início com uma história de trabalho duro e pobreza?… (Risos.)

Kurumada: Sim, sim. Fūma no Kojirō também já vai diretamente para essas partes deliciosas de Ring ni Kakero. Por sua vez, com o “choro” e tal, a preocupação com o pai e a mãe e coisas do tipo, Ring ni Kakero segue os passos das obras esportivas… A obra tem partes que recendem a mangás daquela época, a exemplo de Kyojin no Hoshi e Ganbare Genki, não é verdade? A partir da metade, ou um pouquinho antes, a série meio que veio mudando e entrou num mundo próprio, não? Até então, o boxe tinha um condão de estar sendo feito para que o sujeito carregasse o fardo das circunstâncias de sua vida nas costas, não?

Ingressando no boxe para resgatar a mãe da pobreza e de um casamento abusivo, Ryūji Takane nasceu com um talento conhecido apenas por sua irmã mais velha. O passado, a personalidade e os laços do personagem foram meticulosamente construídos pelo mestre Kurumada. Como a popularidade do mangá explodiu após a inserção das superlutas, o mestre Kurumada resolveu iniciar Fūma no Kojirō a partir das batalhas extremas, minimizando o enfoque do passado e das motivações pessoais. No entanto, o título jamais alcançou o sucesso de Ring ni Kakero

June: Em compensação, talvez possamos dizer que, quando estão no ringue, mesmo que as cenas do duelo continuem, a profundidade aumenta em função da existência desse background… Se isso fosse sumariamente suprimido e apenas as cenas da luta acabassem sendo retratadas, aí, ficaria parecido com um videogame, não é? Sem dizer que é por alguém e tal, acabaria virando algo como lutar pelo combate em si…

Kurumada: Sim. Mas, veja bem, se mostrarmos os elementos do cenário desde o início, os leitores não aderem ao título, sabe? Comparativamente, mesmo se formos introduzindo o cenário depois que as lutas se iniciam com estardalhaço, os leitores conseguem aceitar. Parece que, hoje em dia, o truque de ir apresentando a razão pela qual o personagem não pode perder por intermédio das cenas de reminiscências no decorrer das batalhas está em voga. Além de empregar uma sensação de velocidade, este recurso tem a vantagem de o leitor receber essas informações a partir das partes apetitosas… Por exemplo, se fosse uma torta de morango com creme, equivaleria à permissão de desfrutar a torta a partir da cobertura… (Risos.)

 

A capa do volume 13 da Shōnen Jump Semanal
— Como o design da armadura de ouro também está incluso, levou um tempão. É por isso que os uniformes escolares são os mais fáceis, sabe?
— O senhor os desenhava porque era fácil?
— Não, é claro que fazia porque gostava! (Risos.)

 

June: Em outras palavras, se obrigarmos a pessoa a começar a comer pelo pão de ló, ela se cansa e vai a outro lugar… (Risos.)

 

“O mangá só existe por causa dos leitores.”

 

Kurumada: Exato. Também há essa parte. Acho que nas músicas também é assim. Elas meio que tocam abruptamente a partir da parte boa e entram na introdução depois, não? Tal sensação talvez seja indispensável. Obras deficientes de porrada frequentemente acabam interrompidas quando são introduzidas a conta-gotas a partir dos elementos do cenário…

 June: Na verdade, provavelmente seria melhor ir comendo o bolo e o creme na medida certa, mas tenho a impressão de que isso é mesmo impossível em 19 páginas, não é verdade?

Kurumada: Sobretudo na Jump, como as outras obras são intensas, se você fizer algo moderado, me pergunto se não pareceria incrivelmente lerdo, não é? Mesmo que pensemos que há bastante porrada quando comparado às outras antologias, se olharem entre as quase duas dezenas de obras em publicação na Jump, provavelmente acabarão achando o trabalho extremamente parado.

Ring ni Kakero, um mangá de boxe e superlutas, teve 25 volumes ao todo. Registrando boas vendas, todos os volumes estão sendo comercializados pela Shūeisha. O preço unitário dos livros é R$ 14,20

 

June: Então, essa pressão é mesmo imensa?

Kurumada: É, sim. Como a Jump é a rainha das revistas comerciais, existe a percepção de que um mangá que não faz sucesso nem sequer é um mangá, não é verdade? Além disso, também existe o sentimento de que você é uma droga, se não tiver sucesso. (Risos.) Então, se sua obra não for bem-sucedida em meio às demais, talvez não tenha graça desenhar… Em outras palavras, creio que existe a particularidade de que, antes de chamar de trabalho, nós gostamos de desenhar mangás. Assim, há o aspecto de você se perguntar se um mangá que os leitores não aceitam, ou melhor, um mangá que não angaria popularidade entre os leitores não seria algo inútil… Um trabalho que apenas você mesmo entende, um trabalho que apraz apenas ao próprio autor realmente não é bom, não é? Afinal, as revistas, mangás e romances só existem devido à presença dos leitores.

Cartões autografados por autores famosos decoram o estúdio

June: De fato, se não for apreciado por 4 milhões e meio de pessoas, é ruim. (Risos.) Se for apreciado por 10 mil pessoas, é inútil; se for apreciado por 100 mil pessoas, é inútil. A anuência de 4 milhões e 500 mil pessoas já é imprescindível.

Kurumada: Sim, sem dúvida, é isso mesmo.

June: Em vez de se denominar “mangaka” [autor/artista de mangás], o senhor se diz um “manga-ya” [fazedor de mangás], não é? Tal postura se deve a esse tipo de coisa?

Kurumada: Há um número bem exíguo de pessoas boas o bastante para serem chamadas de “artistas”, a exemplo de autores como o mestre Osamu Tezuka e o mestre Tetsuya Chiba, não é? Trata-se de uma classe de não mais que 10, 20 pessoas, não é? Seria estranho dizer “aqueles que estão na dianteira do atual universo dos mangás”, mas os autores que estão fascinando os leitores não seriam quase amadores?… Especialmente a Jump, que possui particularidades como ter se iniciado com amadores.

Mesmo surpreso, o mestre Kurumada fica absorto na leitura da June

June: Com uma energia similar ao vigor dos amadores…

Kurumada: Mas, se eu tivesse de dizer por que aqueles que foram mestres até agora acabaram perdendo para estes amadores, provavelmente é porque esses experts acabaram esquecendo qual é a natureza do mangá. A diversão é a primeira definição do mangá. Não importa o quanto eu diga a uma criança que estou desenhando algo bom, o momento em que ela será atraída e achará legal… Se forem 2 ou 3 minutos, nestes 2 ou 3 minutos, ela entrará nesse universo e se transformará no protagonista e tal… Trata-se de um sonho com a duração desses minutos. O estudo e o bullying a que ela é submetida ao ir à escola… Mesmo que haja coisas desagradáveis, durante o tempo em que ela estiver lendo Saint Seiya, a criança poderá ficar absorta no universo da obra. É isso que é o mangá. O quanto você é capaz de deixá-las empolgadas. É porque a faixa principal do meu público na Jump é composta por crianças da quarta e quinta séries até sétima e oitava séries… Apesar de dizerem bastante que os fãs dos mangás do Kurumada são praticamente todos mulheres, elas são apenas a camada que mais sobressai. Quem realmente está na fundação desse público são aqueles que compram 300 ou 400 mil [encadernados dos] quadrinhos e enviam o formulário preenchido, as crianças do primário. Pode ser que as garotas de 20 anos não respondam às enquetes para enviar os postais… (Risos.) Quem suporta meus mangás são mesmo esses estudantes até a sexta série, sabe?

 

Saint Seiya, a obra à qual o mestre Kurumada devota todas as suas forças, tem desfrutado de popularidade na Shōnen Jump. O anime é veiculado pela TV Asahi aos sábados, a partir das 7 horas da noite. Consulte as páginas coloridas para conferir os detalhes

June: Manifestando empatia pelos protagonistas, elas devem ler com o pensamento de que também querem ficar fortes, não é?

Kurumada: Creio que também foi assim nos nossos tempos de criança. Com obras como Gekkō Kamen e National Kid…

Estreando em 1958, Gekkō Kamen (Máscara do Luar) foi o primeiro super-herói de live-action da TV japonesa. Como National Kid (1960), foi objeto da idolatria do mestre Kurumada na infância

June: Transformando as toalhas de mesa em capa e as réguas em espada…

Kurumada: Exatamente. É que, mesmo que os tempos sejam diferentes, as coisas que enlouquecem as crianças são as mesmas. Criticar um mangá… fazer avaliações… isso é absolutamente desnecessário. Embora haja diversos gêneros de mangás hoje em dia, nos mangás que faço, o crucial é o quanto as crianças estão se divertindo e se elas estão ficando alucinadas com o conteúdo… Assim, existem revistas especializadas que constantemente ficam desqualificando os mangás, espezinhando os trabalhos ao dizer que desconhecem o motivo de determinada obra fazer sucesso e tal… Falando francamente, isso é uma idiotice sem tamanho. É que não há razão para adultos fazerem uma análise individualizada da obra e transmitirem isso às crianças a despeito do fato de elas estarem se amarrando.

 

Eles também caíram nas graças do mestre Kurumada. O álbum de canções do anime e a coleção da trilha sonora (Columbia) tocam como músicas de fundo durante o trabalho. Preço unitário: R$ 110,00

 

June: É provavelmente por ter chegado a um ponto em que o conteúdo que diverte as crianças também é apreciado mesmo pelos assalariados que agora a Jump tem uma tiragem de 4 milhões e 500 mil unidades. Em contrapartida, a leitura que deleita os adultos pode ser totalmente sem graça para as crianças… Então, de fato, é melhor um conteúdo fácil de compreender… (Risos.)

Kurumada: É claro. Creio que a venda de até 3 milhões de unidades se deva exclusivamente à força dos mangás, mas, quando falamos de 4 milhões e meio de unidades, acho que é por causa da mídia adicional dos animes, não é? Foi mesmo após “Arale-chan”, não?… que o poder do anime se converteu em publicidade… De qualquer forma, se pegarmos uma audiência de 10%, partindo do pressuposto de que a população é de 100 milhões de pessoas, o fato de cerca de 10 milhões de pessoas verem pela TV é incomparavelmente mais surreal que os 4 milhões e meio de leitores, não? Se esses 10 milhões de pessoas conhecerem Saint Seiya mesmo sem ler os quadrinhos, isso se torna um suporte incrível, não é? Talvez esses fatores estejam ligados.

Chegando às lojas de conveniências no dia 30 de dezembro de 1986, a Shōnen Jump nº 5 de 1987 comemorou a tiragem de 4,5 milhões de exemplares, um número absolutamente inimaginável hoje em dia

June: Se virar o assunto da escola, e o aluno não estiver assistindo, não pode participar e tal.

Kurumada: Isso mesmo. Embora eu pense que será desagradável se isso se tornar um bullying… (Risos.) se isso acontecer, vou embolsar mais dinheiro, não é verdade? (Risos.) Algo como “Se não assistir a Seiya, amanhã serei atormentado na escola”… (Risos.)

June: E como foi a infância do mestre Kurumada? Era pobre ou era rico?… (Risos.)

Kurumada: Digo que era pobre?… Parando para pensar agora, provavelmente aquilo era o normal. O típico casal de trabalhadores.

Foto do mestre Kurumada aos 10 anos de idade

June: Então, o senhor brincava sozinho em casa e tal?

Kurumada: Isso. Brincava no parque e em lugares do tipo…

June: Brincar fora de casa é mais saudável.

Kurumada: Além disso, acho que na quinta ou sexta série, as locadoras de livros ficaram populares. A partir dessa época, comecei a ler mangás. É claro, antes disso, acho que a criançada via coisas como Shōnen Jet e Billy Pack, mas eu apenas lia, sem qualquer pretensão particular de me tornar um artista de mangás. Foi por isso que aquele tipo de desenho esférico ficou sem graça.

Billy Pack e Shōnen Jet são mangás de detetives dos anos 50 e 60. Lançado por Mitsuhiro Kawashima, em 1954, na antologia Shōnen Gahō, Billy Pack fez muito sucesso. Com o falecimento do autor, que perdeu a batalha para a tuberculose em 1961, o mangá foi assumido por Toshikazu Yajima. Concebido pelo já famoso Tsunayoshi Takeuchi, Shōnen Jet orbitava em torno das aventuras do detetive Jet (Takeshi Kitamura), que resolvia todo tipo de mistério com o auxílio de seu fiel cachorro. Fazendo um estrondoso sucesso nos quadrinhos e na TV, Shōnen Jet estreou na revista Bokura em fevereiro de 1959. Um mês após a Kōdansha iniciar a publicação, a série foi convertida em live-action pela Fuji TV

June: Os títulos com ares de gekiga apareceram…

Kurumada: Sim, sim. Foi incrivelmente inovador. Antigamente, havia o “Hidekazu Arikawa”, não é? Acho que hoje ele é chamado de Mitsuyoshi Sonoda. Os desenhos daquele homem estavam na vanguarda da época, não é? Entre outras coisas, ele colocava um toque especial nas faces. Obras como Kyojin no Hoshi traziam um toque especial nas faces dos personagens, certo? Quem agiu como uma espécie de precursor daquele estilo foi o Mitsuyoshi Sonoda, sabe?

Um dos precursores do gekiga, o mestre Sonoda retrava as faces dos personagens com grande acuidade e foi uma grande referência para os autores da geração do mestre Kurumada. Desenhou obras como Akatsuki Sentōtai e Akaki Chi no Eleven, o primeiro mangá de futebol, mas seu talento prodigioso na representação das feições humanas sobressai no épico biográfico Sengoku Sarumawashi: Nobunaga, Hideyoshi to Masakatsu Hachisuka [Os Líderes dos Macacos da Guerra Civil: Nobunaga, Hideyoshi e Hachisuka]

Eu me pergunto se passaram a imitar aquilo… Ou digo que passaram a copiar aquele estilo?… Eu também abandonei essas obras ao entrar na sétima série e, às vésperas da minha graduação no ensino médio, se não estou enganado, era hora de decidir se procuraria um emprego ou continuaria os estudos.

June: E quanto às atividades extracurriculares dos clubes no ginasial e no ensino médio? Filiou-se a algum?

Kurumada: Estava no clube de judô. É por isso que quase não tinha conexão com os mangás.

O mestre Kurumada ingressou no clube de judô no primeiro ano do ensino médio. No verão de 1969, aos 16 anos, ele participou do camping de treinamento do clube

June: Por que diabo se reaproximou perto da formatura?

Kurumada: Hum. É que eu não tinha muita vontade de me tornar um assalariado. Pensando que, mesmo que fosse para a universidade, não faria muita diferença só porque me formei, realmente seria melhor fazer algo em que eu tivesse vantagem sobre as outras pessoas, não é verdade? Melhor que fazer o mesmo que as outras pessoas fazem… Se você possui uma habilidade diferente das outras pessoas… O fato é que, naquela hora, eu me questionei se não era um pouco melhor nos desenhos que as outras pessoas. Olhando para trás agora… (Risos.) eu forcei totalmente a barra. (Risos.)

June: E suas notas em artes e tal? 

Kurumada: Eu me pergunto se não seria um 2. (Risos.) No ensino médio, eu não aparecia muito nas aulas. (Risos.)

June: É mesmo? Enquanto não aparecia nas aulas, o que o senhor ficava fazendo?

Kurumada: Ficava jogando Mahjong e coisas do tipo, sabe? Nos salões de Mahjong… (Risos.) eu era péssimo. E, no que se refere à Jump, Otoko Ippiki Gaki Daishō estava arrebentando na época, não é? Seria ruim se eu dissesse isto, mas, na Jump daquela época, não havia muitas pessoas habilidosas. (Risos.) Era mais ou menos a congregação de diletantismo de que falamos há pouco. Eu pensei que, se fosse daquele jeito, eu talvez poderia me tornar um [artista] também e, pela primeira vez, finalizei os desenhos a caneta, sabe? Então, me inscrevi no “Prêmio Young Jump” ou algo do tipo, talvez o penúltimo predecessor do “Prêmio Hop, Step and Jump”, que estão fazendo todo mês agora. Esse foi o ponto de partida…

Lançado no 11º volume de 1968, o ano de estreia da Shōnen Jump, Otoko Ippiki Gaki Daishō é, provavelmente, o título mais importante da história da antologia, responsável por fundear as bases do gênero shōnen como o conhecemos. A obra foi concebida por Hiroshi Motomiya, o autor legendário que moldou a política editorial da revista por intermédio das aventuras do carismático Mankichi Togawa, o arquétipo de herói de carne e osso que fascinou o mestre Masami Kurumada

June: O senhor foi selecionado com o primeiro trabalho enviado?

Kurumada: Não, nadica de nada! Mesmo pensando que eles logo publicariam… (Risos.) perplexo com a total falta de notícias, eu mesmo fui até lá. Justo quando fui perguntar o que diabo estava acontecendo, apesar de ter enviado um trabalho tão incrível… (Risos.) estava um deus nos acuda tão grande que “chamavam até urubu de meu louro” em função de a serialização de Samurai Giants, do mestre Kō Inoue, estar começando. Por um acaso, o editor do mangá, o senhor [Osamu] Sunami, estava lá quando fui. Embora hoje ele seja o editor-chefe da Young Jump, ter encontrado essa pessoa foi coisa do destino. Ele me fazer ir ajudar, e eu ter ingressado como assistente…

Graças ao senhor Sunami (que participou da fundação e batizou a Shōnen Jump Semanal), o mestre Kurumada foi admitido como assistente do mestre Kō Inoue, o desenhista de Samurai Giants, outra série de beisebol com roteiro de Ikki Kajiwara, o gênio criador de clássicos como Kyojin no Hoshi, Ashita no Joe, Ai to Makoto, Tiger Mask e Kick no Oni

June: Isso foi depois de já ter se formado no ensino médio?

Kurumada: Acho que foi por volta de novembro ou dezembro do terceiro ano do ensino médio. Meus outros amigos estavam assoberbados com coisas como testes admissionais em empregos e vestibulares. É como se eu tivesse ido ao exame admissional da Shūeisha… (Risos.) Enquanto os estava auxiliando, me convidaram para trabalhar como assistente, e acho que fiquei ali por cerca de 2 anos e meio.

June: Seus pais aprovaram?

Kurumada: Não aprovaram nem desaprovaram; não conseguiram entender nada… já que eles nem sabiam como ler mangás.

June: Então, foi como se dissessem: “Faça como quiser. Desde que consiga comer, está tudo bem”, certo?

Kurumada: Sim, não é? Já que não disseram para esquecer isso. Pensaram que não tinha problema se eu fizesse o que quisesse, não? Já que ainda estava com 17, 18 anos.

June: Eles não disseram para assumir o negócio da família e tal?

Kurumada: Não, nem “assuma o negócio da família” nem nada disso. Como não venho dessas famílias tradicionais, não havia nada para assumir… (Risos.) pois meu pai trabalhava na construção de edifícios e minha mãe, no mercado de peixes. Assim, só restava apresentar meus trabalhos. 

June: Enquanto trabalhava como assistente…

Kurumada: Sim, sim. Naquela época, demorava para fazer [um capítulo]. Levava uns 4 ou 5 dias por semana. Hoje fica pronto em cerca de dois dias. É que o estafe é grande.

Em 1972, o mestre Kurumada trabalhava como assistente em Samurai Giants

June: Cerca de quantas pessoas?

Kurumada: Hoje o comum são 6 pessoas, com um ajudante externo, creio. Ultimamente, os recrutamentos sempre têm reunido mais mulheres. E, também, o fato é que as garotas são mais habilidosas. Creio que, originalmente, a maioria era fã deste mangá. É bem isso mesmo.

June: Nenhum homem comparece?

Kurumada: Eles até vêm, mas são péssimos. (Risos.)

 

Takeshi Kawai é hipnotizado por Miss Channel (que, na verdade, é um homem!), do time júnior dos Estados Unidos, no volume 10 de Ring ni Kakero

 

June: No caso das garotas, como ficam as linhas vigorosas e tal?

Kurumada: Ah, tem isso, não é? Elas realmente pegam um pouco leve na caneta.

 

“O mangá é um sonho que dura alguns minutos.”

June: Mas e quanto ao fato de, antigamente, o senhor chamar os assistentes de “Shinwakai”?

Kurumada: Sim. Aquilo foi meio que um arroubo da juventude, uma agitação festiva. Estávamos, por assim dizer, trabalhando sem nos despir daquela energia dos novatos.

Consistindo em 4 capítulos especiais, one-shots lançados entre 1979 e 1983, Jitsuroku! Shinwakai é uma paródia hilariante da vida e da carreira do mestre Kurumada. Imiscuindo-se nas tramas dos mangás da Jump, a obra também brincava com a suposta rivalidade do mestre com os demais autores da revista e com sua relação com os assistentes

June: Não se tratava de uma produção; o senhor chamava o grupo de assistentes por esse epíteto?

Kurumada: Sim… (Risos.) mas eu parei na época de Otokozaka. No período de Otokozaka, havia uns exércitos e coisas do tipo, certo? Então, se disséssemos algo como “o Shinwakai do Kurumada”, o povo poderia pensar que éramos da yakuza… (Risos.)

 

Otokozaka, que nos mostrou a dureza e o espírito masculino, infelizmente acabou incompleto, mas, haja vista a vontade do mestre Kurumada de desenhar uma continuação, o dia em que nos reencontraremos com o protagonista, Jingi, provavelmente não está muito distante. A obra tem 3 volumes

 

June: Entendo.

Kurumada: Na época, para piorar, como éramos jovens, não nos viam muito como um grupo de mangaka comum. Antigamente, até aparecemos botando para quebrar no programa Zoom In Asa…

June: O senhor fez arruaça?…

Kurumada: Não. Embora eu não tenha agido violentamente, os meus assistentes… (Risos.) Eu me pergunto se não foi por isso que as conversas sobre o anime foram para o espaço… (Risos.)

June: Ring ni Kakero?

Kurumada: Sim. É que, como tinha 24, 25 anos naqueles tempos, era jovem demais.

June: O “Shinwa” de Shinwakai faz referência às rodas de um carro?

Kurumada: Sim. Dizíamos “rodas” em paródia a “Kurumada” [車田: carro + campo]. Originalmente, “Shinwakai” foi tirado do confronto “Grupo Akashi vs. Shinwakai [Associação Shinwa]”, da série As Batalhas sem Honra e Humanidade [Documentos da Yakuza].

Lançados entre 1973 e 1974, os 5 filmes da série As Batalhas sem Honra e Humanidade (dirigida por Kinji Fukasaku) são considerados a resposta nipônica ao clássico estadunidense O Poderoso Chefão, consistindo num retrato fidedigno do submundo da yakuza. Emergindo do caos e das disputas pelo mercado negro de Hiroshima no pós-guerra, o honrado ex-soldado Shōzo Hirono (Bunta Sugawara) ingressa na yakuza, dedicando-se de corpo e alma ao fraco e inescrupuloso Yamamori. Cansado de servir a um líder ignóbil, Shōzo forma seu próprio grupo e tenta ascender ao comando de Hiroshima. Devido ao intrincado código de honra da máfia, ele se alia ao Grupo Akashi, de Kōbe, para travar uma guerra por procuração contra a poderosa Associação Shinwa (Shinwakai), que suporta Yamamori

Trata-se da vida de antigamente, mas o ordenado de um assistente não era lá grande coisa naquela época. Geralmente, o salário era de cerca de R$ 190,00 por turno, uns R$ 760,00 por semana, sabe? Como só o aluguel custa R$ 310,00, na verdade, não dá para comer, sabe? Como não tinha outro jeito, enquanto trabalhava concomitantemente num tipo de emprego de meio período na limpeza de prédios, eu desenhava meus próprios trabalhos no tempo que me restava, sabe? Então, quando tinha 20 anos, fiz minha estreia com um trabalho chamado Sukeban Arashi. Na verdade, ela nem era uma líder de gangue de meninas. Simplificando, como eu pretendia desenhar algo similar a Otoko Ippiki Gaki Daishō, eu estava trabalhando com um protagonista masculino, mas foi uma espécie de ardil do encarregado do departamento editorial, sabe? Uma vez que só resultaria numa história óbvia se eu fizesse o mangá com um homem, se optasse por uma garota, ainda haveria o bônus dos vislumbres da calcinha e tal… Embora eu não quisesse fazer por não gostar muito de ficar mostrando calcinhas, como um meio de entrar em cena, este trabalho tem concessões como o fato de ter optado por uma garota.

O mestre Kurumada tentou combinar os elementos característicos do gênero nekketsu com cenas cômicas de nudez incidental

June: Mesmo não gostando de mostrá-las em mangás, o senhor gosta de vê-las na vida real?

Kurumada: Eu gosto de vê-las na prática! (Risos.) A cor dos meus olhos até muda… (Risos.) Mas, num mangá, isso é um pouco desagradável, não?

June: Aquilo que o senhor quer retratar nos mangás é algo como o poderoso universo de durões exclusivo dos homens… algo como a filosofia de vida dos homens?

Kurumada: De fato, quero desenhar trabalhos que deixem os garotos empolgados, com o coração na mão. Eu não quero desenhar coisas que deixam os garotos com a cabeça na lua, a exemplo de calcinhas e nudez, sabe? Este sentimento de excitação é melhor, não?

June: Como se você ficasse transbordando de energia ao terminar de ver?…

Kurumada: Exato. Aquele tipo de sensação em que você não sabe como ficou repleto de energia… (Risos.) Ah, eu gosto deste cara (Ele aponta para a página [da matéria] “Em busca de John Lone”, no número 33 da June).

Dono de uma ambição desmedida, Joey Tai (John Lone) trilha sua inexorável escalada ao comando das tríades chinesas de Chinatown, batendo de frente com o truculento delegado Stanley White (Mickey Rourke). Amoral, Joey Tai não tem escrúpulo em devastar a vida pessoal do protagonista, provocando o fim da frágil trégua entre polícia e a máfia

June: Do John Lone?

Kurumada: Esse mesmo. Eu assisti a O Ano do Dragão, sabe?

June: Ali, ele é um tipo autodestrutivo.

Kurumada: Acho que, se tivessem feito o filme focando um pouco mais o John Lone, teria ficado um pouco mais divertido, não concorda?

June: Esse filme estava um pouco inclinado para o Mickey Rourke, não é mesmo?

Kurumada: Como colocaram os holofotes no Mickey Rourke na tentativa de mostrar a perspectiva de um casal americano de hoje em dia, talvez tenha ficado confuso demais… Acho que teríamos nos sentido mais satisfeitos se tivessem colocado cenas do John Lone ascendendo mais um pouco, não?

 

Ficha

 

Nome real: Masami Kurumada. Nascido em 6 de dezembro de 1953, é do signo de Sagitário! Natural de Tsukishima, Tóquio, seu tipo sanguíneo é A. Venerando Otoko Ippiki Gaki Daishō e propelido por um sentimento que dizia algo como: “Entrarei no Yomiuri Giants, já que atletas como o [Shigeo] Nagashima e o [Sadaharu] Ō estão lá!”, levou seus trabalhos à Shōnen Jump e, depois de trabalhar como assistente do senhor Kō Inoue, fez sua estreia com a obra Sukeban Arashi, em 1974.

Depois do grande sucesso Ring ni Kakero, um mangá ímpar de boxe em que produziu técnicas secretas como a Galactica Magnum, o Rolling Thunder Special e a Devil Propose, lançou Fūma no Kojirō, Otokozaka e Raimei no Zaji. Atualmente, está desenhando Saint Seiya. O papel dos seus mangás é o papel de desenho Sakura. A caneta é a Kabura Pen Zebra. Quanto à leitura, como aprecia o gênero dos romances históricos, gosta de Ryōtarō Shiba, Eiji Yoshikawa…

Os filmes favoritos são Documentos da Yakuza [Batalhas sem Honra e Humanidade], O Poderoso Chefão etc. “Atores como o Al Pacino e o Robert de Niro têm uma presença bacana, não?” Um autor de mangás próximo é o mestre Norihiro Nakajima, de Astro Kyūdan. Nas pausas do trabalho, gosta de dirigir, beber e de caraoquê. “Antigamente, ia bastante a bares de drag queens. Mas parei de ir depois que a aids se disseminou. Eu não tenho esse gosto de forma alguma, mas era legal. Elas gritavam: ‘Oláááá, mestre!!’” (Risos.)

O que o senhor coleciona? “Nada. Correntes e coisas do tipo… Se dissesse isso, daria pano para manga.” (Risos.) E quanto a filhos? “Uma de 1 ano e meio e uma menina de cerca de 1 mês. Elas ainda não podem ler nada do mangá, mas, como veem o anime de ‘Seiya’ toda semana, começam a dançar quando tem início.” (Risos.)

A música de fundo do trabalho, a idade dos cavaleiros, “beautiful wars”… a conversa interessante vai continuar, mas no número de julho.

 

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Aficionado sectário de Saint Seiya desde 1994, sou um misoneísta ranzinza. Impelido pela inexorável missão de traduzir todas as publicações oficiais da série clássica, continuo a lutar. Abomino redublagens.

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