Uma efeméride, a estreia de Os Cavaleiros do Zodíaco na TV brasileira, em 1º de setembro de 1994, marcou de forma indelével as pessoas que acompanharam o seriado na Rede Manchete, revolucionando o entretenimento direcionado ao público infanto-juvenil e se transformando num autêntico fenômeno da cultura popular. Levando a moribunda emissora da família Bloch à liderança de audiência durante sua exibição matutina, a série rompeu o paradigma das coqueluches sazonais, atrações que até ganhavam a preferência da criançada, mas que acabavam caindo no esquecimento após o surgimento de uma nova modinha.
Constituída de fragmentos do longa-metragem A Lenda dos Jovens Carmesins [A Batalha de Abel] e de trechos dos episódios 31, 32 e 33, esta nostálgica abertura também foi veiculada na Espanha e no México. A canção foi baseada na música Les Chevaliers du Zodiaque, interpretada por Bernard Minet
A priori, embora surpreendente, a repercussão explosiva do seriado, que se tornou o programa mais visto da emissora, foi tratada com naturalidade pelos veículos da imprensa convencional, já que, historicamente, os brasileiros têm cultuado os heróis da TV nipônica desde a popularização dos aparelhos de televisão no País. National Kid arregimentou suas hostes de admiradores nos anos 60, Ultraman e Speed Racer conquistaram a garotada na década de 70, enquanto Patrulha Estelar e a reexibição do clássico Sawamu, o Demolidor encantaram a audiência na década seguinte. Essa tradição havia se perpetuado com Jaspion, Changeman e os numerosos live-actions transmitidos pela Manchete a partir de 1988.
No entanto, logo ficaria claro que o frenesi desencadeado pelos cavaleiros não encontrava paralelos na história da programação televisiva. Quadruplicando a audiência do Clube da Criança, o anime passou a ser exibido em horário nobre aos domingos; quadruplicando o índice dominical, adquiriu status de superprodução independente; líder inconteste em sua veiculação matinal, impingiu derrotas ignominiosas à Rede Globo, registrando o dobro da audiência da TV Colosso e ostentando um indefectível segundo lugar durante a transmissão das novelas vespertinas da principal emissora do País.
Ignorando a economia, vergastada por 15 anos de hiperinflação e corrupção endêmica, a Samtoy comercializou 1 milhão e trezentas mil unidades das caríssimas miniaturas dos cavaleiros, artigos que custavam mais da metade do salário mínimo vigente. Enquanto as réplicas dos bonecos da Bandai eram vendidas aos milhões, álbuns, figurinhas, bonés, balas, máscaras, bicicletas e uma infinidade de produtos licenciados simplesmente evaporavam.
Nenhuma atração anterior inspirou tantas paixões ou gerou tamanha idolatria. Era mais que uma “febre infantil”, era mais que um fenômeno mercadológico; tratava-se de uma revolução comportamental. A histeria provocada pelas peripécias dos galantes cavaleiros de Atena sublevou as escolas e cooptou virtualmente todos os garotos do ensino fundamental.
Onipresente nas conversas e brincadeiras das crianças, dos adolescentes e de um enorme contingente de adultos, de setembro a novembro, a atração passou a permear todos os aspectos do dia a dia dos espectadores. A mobilização rivalizava com o ufanismo dos tempos de glória do venerado Ayrton Senna — alçado ao patamar de herói nacional ainda em vida por seu denodo suicida e pela cobertura hagiográfica da Rede Globo.
Após a morte do piloto, o evento mais traumático da história recente do País, e a conquista do tetracampeonato mundial de futebol pela seleção brasileira, o povo retornava paulatinamente a sua rotina: os adultos assistiam às novelas da Globo, ao passo que as crianças e adolescentes reencontravam seu quinhão de felicidade nos quadros da TV Colosso, nas atrações veiculadas no SBT e na Rede Cultura e nas séries do gênero tokusatsu da Manchete.
Brandindo o slogan “TV de primeira classe”, a Rede Manchete havia iniciado suas operações, em 5 de julho de 1983, com a proposta de oferecer uma grade televisiva de qualidade aos brasileiros; contudo, o sucesso de crítica de sua programação erudita jamais se converteu em audiência e anunciantes. Apesar da incapacidade de arrebanhar telespectadores com os musicais produzidos nos estúdios da casa e com os caros documentários importados da BBC, a emissora parecia ter encontrado seu filão no público infanto-juvenil, que migrava em peso para o canal durante a exibição do Clube da Criança, no ar desde o 2º dia de operação da rede de televisão.
Transmitido de segunda a sábado, das 17 às 19 horas, o Clube da Criança foi também o palco de estreia da apresentadora Xuxa Meneghel, a animadora de auditório que, anos mais tarde — e em outra emissora —, seria aclamada como a “rainha dos baixinhos”. Delineada por Maurício Sherman, a fórmula do programa consistia num amálgama de gincanas infantis, desenhos animados e uma apresentadora estonteante. Graças à desenvoltura da modelo e à boa receptividade de animações como O Pirata do Espaço, Patrulha Estelar e Don Dracula, a atração arrebatou as crianças e adolescentes, levando a Rede Globo a contratar a apresentadora já em 1986.
Em 4 de julho de 1994, a Miss Mundo Rio de Janeiro 1993, Patrícia Nogueira, assumiu o comando da atração
Em 1994, após 11 anos de administração temerária, apostas infrutíferas e uma sucessão de negociações fracassadas para a venda do canal, a Manchete agonizava a olhos vistos, auferindo no máximo 4 pontos de audiência. Uma sombra de seus tempos áureos, o Clube da Criança oscilava entre 1 e 2 pontos no Ibope. Foi nesse cenário ominoso, em meio aos velhos cartuns desse programa decadente, que a epopeia dos cavaleiros teve início, às 18h30 de uma quinta-feira, no hoje antológico dia 1º de setembro.
Eternizada pela voz possante de Eloy Decarlo, a chamada do anime deixava a garotada em polvorosa
A novela Pantanal, transmitida de 27 de março a 10 de dezembro de 1990, levou consigo a única chance que a Manchete teve de sair do vermelho, e os anos em que a emissora continuou no ar custaram aos Bloch todo o seu patrimônio. A temerária pertinácia da família, que apostou erroneamente até os últimos centavos na aventura televisiva, foi, paradoxalmente, um dos fatores determinantes para a explosão de Os Cavaleiros do Zodíaco no Brasil — se a situação do canal não fosse tão calamitosa, o anime possivelmente não teria espaço na programação da época.
Com o fantasma da falência em seu encalço desde a gestação do canal, a Manchete abriu suas portas para os enlatados do gênero tokusatsu, programas exponencialmente mais baratos que as malfadadas produções da casa. Esses seriados, sobretudo Jaspion (exibido a partir de março de 88), obtiveram ótima receptividade entre o público infantil.
Contudo, os programas direcionados a crianças jamais propiciaram um grande retorno financeiro à emissora. O baixo poder aquisitivo do público-alvo tendia a afugentar anunciantes de peso, fazendo do período destinado à programação infantil o horário mais barato da televisão. Devido a essa triste realidade, nos últimos 15 anos, as emissoras passaram a dedicar o horário matutino às donas de casa.
Com uma média de 5 pontos de ibope — e 7 de pico — nos episódios inéditos, Jaspion virou mania entre os garotos, ajudando a manter a emissora de Adolpho Bloch no mapa da TV até a estreia de Pantanal, a superprodução que quebrou a hegemonia da Rede Globo, liderando a audiência com picos de mais de 40 pontos. Os sucessivos prejuízos com as novelas seguintes catalisaram a debacle e, após 1992, não havia mais tábua de salvação.
Em 1994, quando foi contatada pela Samtoy, detentora dos direitos de exibição de Saint Seiya e distribuidora exclusiva das miniaturas fabricadas pela Bandai, a Rede Manchete devotava inacreditáveis 6 horas de sua grade diária a programas infantis, uma maratona que se iniciava com a Sessão Animada, das 8h às 8h30, continuava com o Dudalegria, das 10h ao meio-dia, atingia seu ponto alto com as séries nipônicas Cybercop, Patrine e Winspector, no ar das 15h30 às 17h, e terminava com o Clube da Criança, transmitido das 17h às 19h.
Cientes da penúria financeira do Grupo Bloch e convencidos de que a violenta animação dos cavaleiros dificilmente seria acolhida por outra emissora — a série, de fato, já havia sido recusada pelos canais de maior audiência —, os executivos da importadora espanhola fizeram uma proposta irrecusável ao superintendente comercial da casa, Osmar Gonçalves: cederiam os direitos de difusão do anime em troca da veiculação de três comerciais, vinhetas nas quais a Samtoy divulgaria as miniaturas da Bandai.
Chefe da divisão de cinema da Rede Manchete em 1994, Eduardo Miranda, responsável pela chancela da exibição do anime, fala sobre a permuta com o licenciador
A permuta se tornara um formato recorrente de aquisição de produtos na emissora desde a introdução dos live-actions importados do Japão pelo empresário Toshihiko Egashira, no final da década de 80. Além disso, a exibição do anime não foi às cegas; o canal teve o cuidado de realizar sessões prévias de sondagem em julho de 94, e os resultados junto ao público infanto-juvenil foram muito promissores. Contudo, ninguém — nem mesmo a Samtoy, que esperava vender 80 mil miniaturas até o final do ano e vendeu cinco vezes mais — poderia prever um sucesso de tamanhas proporções.
A importadora tinha plena confiança na popularização da série e precisava de uma vitrine para ofertar seu produto, ao passo que a Manchete, que nada desembolsava e já estava virtualmente quebrada, nada tinha a perder com a transmissão da animação. Mesmo que encontrasse outra emissora disposta a comprar a série, a distribuidora não poderia garantir que a atração não fosse engavetada, mutilada ou exibida em horários esdrúxulos. Portanto, a Manchete não era a melhor vitrine, mas a única da época.
Veiculadas nos intervalos dos episódios, as propagandas das miniaturas distribuídas pela Samtoy enfeitiçavam as crianças. Com aproximadamente 30 segundos de duração, cada anúncio apresentava 4 armaduras dos signos zodiacais e 1 traje de bronze
Mais eficiente que qualquer campanha publicitária, a propaganda boca a boca se encarregou de espalhar a notícia da estreia de um “desenho absolutamente diferente”, transformando o anime no programa de maior audiência da Manchete em seus dois horários de exibição diária, às 10h30 da manhã, num bloco do Dudalegria, e às 18h30 (deixando o Clube da Criança em 2 de fevereiro de 1995, quando foi promovido a atração independente).
No dia 23 de outubro, após virar o mundo das crianças de ponta-cabeça, o anime ganhou seu próprio programa no horário nobre dos domingos, o Cavaleiros do Zodíaco Especial. O especial ia ao ar às 19h (ou 19h30, dependendo das transmissões de eventos de boxe) e passou a quadruplicar a audiência do horário, que pulou de um 1 para quatro pontos.
Os excelentes resultados da série foram timidamente prolatados na edição de 28 de outubro de 1994 do jornal carioca O Globo, que alertava os leitores da recém-iniciada exibição aos domingos. De acordo com a publicação, a reprise dos episódios 1 e 2, exibida no especial dominical do dia 23, havia alcançado 8 pontos no Ibope, “a mesma marca alcançada durante a semana”. A reportagem dizia que Os Cavaleiros do Zodíaco era um sucesso de público. Sem dúvidas, um registro precioso da audiência inicial da série.
No dia 16 de novembro de 1994, muito antes de a série atingir o zênite de seu sucesso, a revista Veja se rendia ao fenômeno popular deflagrado pela exibição, tentando perscrutar em uma única página as razões de sua ascensão meteórica. Imiscuindo-se nas minúcias contratuais da aquisição do título pela Manchete e na importação das miniaturas pela Samtoy, a matéria é um valioso registro histórico do êxito do seriado, que se tornou o carro-chefe da emissora em apenas dois meses, obtendo uma média de 7 pontos de audiência na Grande São Paulo.
Condenada à extinção, a Rede Manchete jamais tirou o pé da lama de fato, mas não há dúvidas de que a repercussão das aventuras de Seiya deu uma sobrevida ao canal. O texto traz também o relato de Osmar Gonçalves, então superintendente comercial da Manchete e um dos homens que apostaram suas fichas na série, que expressa a surpresa da emissora com o fenômeno: “Sabíamos que o desenho era sucesso no exterior, mas não imaginávamos que seria aqui também dessa forma”.
Em 27 de novembro de 94, chegava a vez de o Estadão falar da série. Na matéria intitulada “Heróis do Zodíaco dão ibope na Manchete”, Geraldo Galvão Ferraz esmiuçava a demanda pelos bonecos, que obrigara a Samtoy a fretar 17 aviões para transportar a mercadoria que seria trazida de cargueiro. Acreditando que os episódios inéditos estreariam no dia seguinte, o jornalista também relembrou o sucesso das sessões de sondagem realizadas em julho, sacramentadas pela audiência.
Segundo o repórter, a representante exclusiva da Bandai iniciara a comercialização das miniaturas já no dia 12 de setembro, o que evidencia a indefectível crença da empresa no sucesso da animação. É importante destacar que o primeiro lote de bonecos, constituído de 80 mil unidades, se esgotou antes que setembro chegasse ao fim, ou seja, 80 mil miniaturas em apenas 18 dias.
Em meio à primeira reprise dos episódios diários, o jornal O Globo foi compelido a tomar nota do sucesso do anime, publicando, no dia 22 de novembro de 1994, a matéria “Mais uma febre importada do Japão”. Com a epígrafe “Cavaleiros do Zodíaco conquistam a criançada” e a informação de que a Manchete havia acertado a compra dos 62 capítulos remanescentes, a reportagem consiste num inestimável registro documental dos feitos do programa da Manchete, sobretudo por emanar das Organizações Globo.
Apesar da ignota informação de que o lote de 62 episódios teria sido comprado no Japão, Eduardo Miranda, chefe da divisão de cinema da emissora à época, asseverou em reiteradas oportunidades que, dada a situação da Manchete, todos os capítulos foram adquiridos mediante permuta.
Em 2 de dezembro de 1994, ante a repercussão viral da série entre a criançada e a odisseia dos pais pelos dispendiosos bonecos, a Folha de S. Paulo afirmava categoricamente: “Cavaleiros do Zodíaco vira nova mania”. A imprensa não podia mais ignorar o fenômeno social desencadeado pelo anime e, ainda que não houvesse qualquer preocupação em entender as limitações técnicas das produções nipônicas e o fato de o seriado, no Japão, ser veiculado num horário destinado a toda a família, era a primeira vez que um jornal de grande circulação reconhecia que a febre também contagiava os adultos — mas só até 19 anos.
É interessante notar que, diferente da mídia francesa, os veículos de comunicação brasileiros voltados ao público adulto jamais reconheceram a qualidade técnica do seriado. As matérias tinham um condão primacialmente depreciativo e quase sempre versavam unicamente sobre o consumismo dos bonecos. O anime sempre carregou o estigma de desenho caça-níqueis, uma nova “mania” encomendada para espoliar os pais. No entanto, com o lançamento da revista Herói, em dezembro, os cavaleiros passaram a inaugurar seus próprios veículos de comunicação.
Seguindo uma tendência iniciada com a difusão do seriado na França, a América Latina também assistiu à gênese de um novo segmento do mercado editorial, revistas pseudoespecializadas que nasceram com o advento de Os Cavaleiros do Zodíaco, floresceram no auge da série e praticamente feneceram com o fim de sua transmissão.
Destoando do modelo consagrado das revistas nipônicas Animage e Newtype, as publicações lançadas no continente americano, capitaneadas pela brasileira Herói — que chegou à tiragem semanal de 450 mil exemplares —, adotaram o prosaico formato das revistas de fofoca, nutrindo-se, basicamente, das impressões de redatores que não dominavam o idioma japonês. Incapazes de compreender as falas e o texto, os profissionais dessas publicações se baseavam em fitas de vídeo contrabandeadas do Japão e em fotos que estampavam revistas importadas para revelar o conteúdo dos episódios inéditos na TV brasileira, disseminando disparates que até hoje fazem corar os intrépidos “arqueólogos de sebos”.
A projeção do elenco de dubladores também foi uma consequência particular da veiculação de Os Cavaleiros do Zodíaco na Europa e na América Latina. Assim como ocorreu na França e no México, os intérpretes da versão brasileira ganharam notoriedade graças ao arrebatamento causado pela série. Profissionais relegados ao anonimato desde o estabelecimento do ofício no País, em 1938, os dubladores foram apresentados ao público brasileiro por intermédio das revistas que surgiram em decorrência da estreia do anime, conquistando uma merecida visibilidade.
Em 18 de dezembro de 1994, o jornal O Globo trazia uma pequena matéria sobre os heróis, explicando a insueta estilização dos olhos dos personagens e falando das armaduras desmontáveis. Como a política editorial da Shōnen Jump era desconhecida no País, o articulista Gilberto de Abreu atribuía o padrão das aventuras à filosofia naturalista: “Para vencer na vida, é preciso passar por algumas penitências”.
No mesmo dia, o periódico fluminense O Dia publicava a matéria “Cavaleiros do Zodíaco: A Invasão”. Com o frenesi desencadeado pela iminência do Natal, Ricardo Linck informava que a série havia se consolidado como o programa mais visto da emissora — com picos de 8 pontos de audiência — e que suas miniaturas eram o presente mais cobiçado da festa natalina. O estoque de 400 mil bonecos importados pela Samtoy havia se esgotado antes do dia 25, levando os pais ao desespero. Obedecendo à lei da oferta e da procura, os poucos artigos restantes no varejo foram vendidos a preço de ouro no Natal.
Consultado pela reportagem, Eduardo Miranda retificou a previsão inicial do fim das reprises, alertando que o pacote de episódios inéditos não estrearia antes de março de 95. O calvário dos espectadores, fissurados pela continuação da Batalha das 12 Casas, estava longe de terminar.
Com a aproximação do Natal, a procura pelas miniaturas dos cavaleiros explodiu, mas a escassez dos artigos acabou deixando centenas de milhares de crianças sem presente. Veiculada na Veja Rio do dia 21 de dezembro de 94, a matéria “Heróis do Consumo” narrava as batalhas campais dos pais pelos bonecos da Bandai, o Santo Graal das festas natalinas. Considerando que o preço médio das miniaturas girava em torno de 38 reais, 54% do salário mínimo vigente, tratava-se de artigos de luxo, praticamente inacessíveis à maior parte da população.
Inquirido pela jornalista Leila Sterenberg sobre a carestia da oferta, o gerente administrativo-financeiro da Samtoy, Glauco José Lima, lastimou a falta de estoque: “Não estamos conseguindo atender aos pedidos. Esperávamos até agora ter vendido no máximo 100.000 bonecos no país. Já passamos dos 400.000”.
A impossibilidade de atender os compradores de alto poder aquisitivo e a demanda crescente das classes C e D acabaram por fomentar o gigantesco mercado das falsificações de baixa qualidade. Fabricadas em Taiwan e importadas do Paraguai e do Panamá, essas réplicas, vendidas por valores entre R$ 8,00 e R$ 25,00, se tornaram uma verdadeira pandemia no Brasil, incomodando até mesmo o autor da obra original.
Compelida pela Bandai a coibir a pirataria e tencionando resguardar seu próprio lucro, a Samtoy passou a veicular informes publicitários em jornais de grande circulação para ratificar sua posição de distribuidora exclusiva das miniaturas japonesas e intimidar os vendedores de falsificações. Com essas declarações, a empresa também criava um canal para denúncias, uma medida que se provou totalmente anódina em face da popularização dos bonecos chineses.
A série se tornara assunto obrigatório em todas as escolas do País, mas, apesar do pandemônio gerado pelas miniaturas, um imbróglio paralisava o licenciamento de artigos oficiais. Por intermédio da Samtoy, determinou-se que os direitos seriam partilhados pela Agência Sempre Propaganda, que já atendia a Bandai em território nacional, e pela Alien International, comandada pelo empresário Carlos Takeo Tomita, agente licenciador dos apresentadores do SBT Eliana e Gugu. No entanto, a Sempre se mostrou pouco disposta a dividir os contratos, tornando a parceria insustentável.
A sevícia da Sempre, consubstanciada na incapacidade da empresa de firmar contratos de uso de imagem ou permitir que a outra licenciadora o fizesse, levou a Alien International a requerer apenas os direitos de exploração de figurinhas, um mercado no qual a firma possuía expertise. Tendo essa pretensão obstaculizada pela Sempre, o sr. Tomita finalmente obteve o contrato ao negociar diretamente com a Cloverway, que representava a Tōei Animation, a Bandai e a Shūeisha na América.
Poucas semanas depois, diante da inércia da tradicional agência de propaganda paulistana, a Cloverway acabou repassando todos os direitos de merchandising à Alien, que seria beneficiada pela providencial repetição do seriado na TV.
O auspicioso ano de 1995 chegou sem as novidades esperadas pelo exército irrefreável de crianças, adolescentes e adultos que afluía à emissora da família Bloch para acompanhar a epopeia dos jovens defensores de Atena. Dispondo de apenas 52 episódios dublados, a Manchete foi compelida a empreender duas reprises — entre 14 de novembro de 94 e 1º de maio de 95 —, supliciando os milhões de aficionados que aguardavam pelo desfecho da batalha de Seiya e Aiolia na Casa de Leão.
Inesperada e desalentadora, a segunda repetição da “primeira fase” deflagrou a fúria dos telespectadores, levados a acreditar que os novos capítulos iriam ao ar em janeiro de 95 (e depois em fevereiro, março e abril) pelos numerosos comunicados distribuídos à imprensa desde o ano anterior. O angustiado público nem imaginava que a exibição do anime seria dividida em 3 etapas, do episódio 1 ao 52, do 53 ao 84 e do 85 ao 114.
Ignorada pela Rede Manchete, a indignação dos espectadores da animação foi registrada por todos os jornais de grande circulação do Brasil. Fazendo coro às críticas mordazes publicadas nos demais periódicos, a edição de 5 de fevereiro do jornal O Globo deu vazão à revolta de um dos mais eloquentes emissários dessa “maioria nada silenciosa”:
Em 2 de fevereiro de 1995, três meses após ganhar um programa dominical no horário nobre, a série finalmente deixou o Clube da Criança, passando a ser transmitida como uma atração independente, comandada pela apresentadora paraense Mytsue Ikeda, então com 10 anos de idade. Com um cenário que se pretendia futurístico, o programa consistia na apresentação da sinopse do episódio a ser veiculado, na transmissão do capítulo e numa tomada de encerramento em que a garota se despedia do público.
Espirituosa, a neta de japoneses disputou a concorrida vaga de Apresentadora do Zodíaco com outras 44 crianças nipo-brasileiras, gravando sua participação na cabine de espaçonave confeccionada pelos cenógrafos da Manchete uma vez por semana.
Atiçando a sanha dos acólitos fiéis por episódios inéditos, as duas reprises arregimentaram miríades e miríades de novos fanáticos, dando tempo à Alien International para converter a imensa popularidade do anime em 16 produtos licenciados até julho de 1995, a exemplo do famigerado álbum da Multi Editora, lançado em fevereiro. Uma aposta do presidente da editora, Francisco Pellegrini Júnior, o livro ilustrado revitalizou o mercado das figurinhas, que havia decrescido 75% desde 1992.
Antes de encampar o projeto, a Multi Editora já havia se notabilizado pelo lançamento de álbuns de figurinhas de enorme sucesso, a exemplo do volume dedicado à produção hollywoodiana RoboCop 2, que vendeu 40 milhões de envelopes em 1990. No entanto, a empresa foi pega de surpresa pelo sucesso sem precedentes do álbum dedicado aos guerreiros estelares, o mais bem-sucedido desde a sua fundação, em 1982.
No dia 26 de março, o jornal O Globo deu início a uma série de matérias registrando a odisseia das crianças em busca das figurinhas. Para o desespero dos consumidores e dos jornaleiros, a cota diária de envelopes e álbuns desaparecia das bancas num átimo. Consultado pela reportagem, o assessor de imprensa da Multi Editora, Cláudio Luchesi, foi peremptório: “Mesmo praticamente trabalhando só com os Cavaleiros, a procura no mercado é muito grande”.
Acrescentando dramaticidade a essa “tragédia infantil”, o jornaleiro Luiz Gonzaga resumiu a demanda dos vorazes colecionadores: “Se mil figurinhas eu tivesse, mil figurinhas eu venderia por dia. Recebemos cerca de 400 e acaba tudo rapidinho”.
Seguindo uma praxe do setor, a Multi regionalizou o lançamento do álbum para mitigar os riscos da empreitada — a venda inicialmente ficou circunscrita à região metropolitana de São Paulo, sede e base das operações da editora, estendendo-se de forma restrita a alguns municípios do Rio de Janeiro —, mas a demanda desmesurada logo levaria a empresa a ampliar sua capacidade de produção a fim de comercializar o livro ilustrado em outras cidades. No final de abril, a distribuição passou a alcançar outros estados da federação.
Apesar da alta especialização da editora, que dividia a liderança do mercado nacional com a Abril Panini e com a Editora Globo, a impressão de álbuns e figurinhas nunca conseguiu satisfazer o furor dos fãs de Cavaleiros. Servindo de aferidor do sucesso da série de TV, a demanda inexaurível pelas figurinhas foi um fato marcante nas crônicas tupiniquins da turma de Seiya. Para o público do anime, o colecionismo se convertera numa espécie de catarse, purgando a tensão gerada pelas sucessivas reprises. No dia 27 de abril, às vésperas da estreia do segundo lote de episódios, o jornal voltou a conversar com as crianças e jornaleiros para entender a “invasão dos guerreiros estelares”.
Inquirida pela reportagem do Jornal de Bairro Barra, a jornaleira Gênova Tavares explicou a natureza dessa febre: “É uma epidemia muito pior que a dengue. Vendo cerca de duas mil figurinhas em um único dia. Já aconteceu de eu receber sete mil pacotinhos e não ter mais nada 24 horas depois”. Na primeira dezena de março, chegaram às lojas as máscaras da tradicional fábrica de brinquedos Estrela, outro sucesso acachapante de vendas. Após uma prospecção de mercado, a empresa decidiu produzir apenas 4 modelos, Pégaso, Dragão, Cisne e Fênix, preterindo o modelo de Andrômeda. Esmeradas, as máscaras eram comercializadas por preços que variavam entre R$ 7,50 e R$ 9,50.
Um grande êxito da licenciadora Alien International, o lançamento da Estrela visava as crianças de três a oito anos — o estrato mais jovem dos fãs do seriado —, representando uma alternativa de baixo custo às onerosas miniaturas importadas pela Samtoy.
Em meio à espera interminável dos espectadores pela estreia dos episódios inéditos, a Folha de S. Paulo visitou o estúdio da Gota Mágica em busca de informações para aplacar a ansiedade dos fãs, e o resultado pôde ser visto numa ótima reportagem, veiculada no dia 24 de março. Com a sugestiva epígrafe “Shiga e Ávora são novos vilões do desenho”, a matéria amainou a conta-gotas a expectativa das crianças, antecipando vários desdobramentos do roteiro e os títulos dos próximos capítulos, que iriam ao ar em maio.
Memorável, a reportagem foi a primeira oportunidade que os fãs dos guardiões do universo tiveram de conhecer os bastidores da dublagem, os intérpretes do Cavaleiro de Pégaso e da deusa Atena, Hermes Baroli e Letícia Quinto, e a argentina Susana Colonna, a tradutora encarregada de verter as falas da versão mexicana para o nosso idioma.
Pouco antes de eternizar sua voz como intérprete do Cavaleiro de Gêmeos, Gilberto Baroli, também diretor da dublagem, tentou esclarecer a função dos dubladores ao público: “Para ser bom dublador, é preciso antes ser bom ator. A pessoa tem que saber passar a emoção da fala, mas dentro de um tempo certo”.
Após 170 dias de uma espera angustiante, em 1º de maio de 1995, a voz prodigiosa do ator Jonas Mello finalmente pronunciou o título do episódio 53, Cassios morre por amor, levando milhões de fãs da turma de Seiya à loucura. Esse dia seria um divisor de águas na trajetória paroxística de Os Cavaleiros do Zodíaco no Brasil. Indescritível, o sucesso do seriado se transfiguraria numa autêntica convulsão social.
Graças a uma confluência sinestésica de fatores, como a qualidade empírea da animação, o sucesso mercadológico e a competente estratégia de divulgação da Manchete, os cavaleiros logo despertariam o poder para defenestrar a Rede Globo da liderança no Ibope, massacrando a TV Colosso, um dos melhores programas infantis da história da televisão brasileira.
Inesquecível, a chamada exibia cenas inéditas da luta de Seiya e Aiolia. Depois de quase meio ano de reprises, os telespectadores finalmente puderam acompanhar o desfecho da conflagração do Santuário
No olho do furacão, o jornal O Globo tentou apagar o incêndio com a matéria “‘Cavaleiros’ tem data para acabar”, veiculada na edição de 14 de maio. Sem fugir ao padrão sub-reptício das Organizações Globo, a reportagem informava que a bonança da Manchete estava por terminar em decorrência dos poucos episódios inéditos que ainda restavam do seriado.
Compelido pelo destino a trazer más notícias, Glauco Lima, o gerente administrativo-financeiro da Samtoy, mais uma vez lamentou: “A informação oficial da Bandai Internacional é de que são apenas 114 episódios. Se houvesse mais, nós já estaríamos planejando o lançamento, com certeza”.
Atirando a pedra e escondendo a mão, a articulista Daniela Ribeiro utilizou a segunda parte da matéria para exalçar a violência do programa de maior sucesso da emissora concorrente, reduzindo-o a uma modinha confusa e espoliativa. De acordo com a reportagem, a audiência, que havia decrescido 3 pontos em função das reprises, voltara ao patamar da primeira exibição dos capítulos.
Paralelamente, chegava às lojas o CD do seriado, um produto que marcaria época com a venda de mais de 210 mil cópias em menos de dois meses. Sincronizando o lançamento do disco com a estreia dos novos episódios, a Sony Music iniciou a comercialização na segunda quinzena de maio. Coproduzido por Mário Lúcio de Freitas, em São Paulo, e por Augusto César, radicado no Rio de Janeiro, o álbum nacional trazia 8 músicas inspiradas na trama e contava com a lúdica participação de Hermes Baroli e do ator Walter Breda, intérprete do Mestre Arles na primeira fase de exibição.
Idealizado pelo dono do estúdio Gota Mágica durante a dublagem do primeiro lote de episódios, antes da estreia do anime na Rede Manchete, o projeto só foi chancelado após a veiculação da primeira fase e a consequente conversão da série em fenômeno. Sem permissão para compilar a música Os Guardiões do Universo, a Sony incumbiu o compositor Augusto César da criação de uma nova canção-tema.
Para promover o álbum, a música Cavaleiros do Zodíaco, cantada pela dupla de crianças Larissa e William, substituiu a canção Os Guardiões do Universo como novo tema de abertura da série. As canções do disco seriam pontualmente inseridas em alguns episódios da Saga de Asgard e, sobretudo, no longa-metragem A Batalha de Abel.
Com um marketing ostensivo, os comerciais do disco foram veiculados em várias emissoras. Para promover os CDs, a dupla Larissa e William se apresentou inclusive no Xuxa Hits, um quadro do programa de auditório Xuxa Park, comandado pela apresentadora Xuxa Meneghel na Rede Globo
Com a Batalha das 12 Casas em seu clímax, o anime aliciou praticamente todas as crianças e adolescentes do País, obtendo índices de audiência jamais alcançados. Esse fervor fez com que a série suplantasse o ibope da Rede Globo em 3 ocasiões no mês de maio. Publicada no dia 3 de junho pela Folha de S. Paulo, a reportagem “Desenho da Manchete bate TV Colosso” não deixava dúvidas: quando não vencia o programa da Globo, a animação ficava em segundo lugar, um feito sem precedentes na época.
Segundo o jornal, a exibição matinal do episódio Juramos proteger Atena, no dia 18 de maio, atingiu a média de 11 pontos de audiência na Grande Rio, o dobro da marca obtida pela TV Colosso. A veiculação dos capítulos A espada sagrada ruge e Adeus ao meu mestre e aos meus amigos também superou a Globo, provando que os cavaleiros realmente não se acovardavam diante de nenhum obstáculo.
Apesar de amealhar apenas um quinto da audiência das irrivalizáveis novelas globais, a exibição vespertina também era incrivelmente bem-sucedida, uma vez que se trata de um horário tradicionalmente dedicado às donas de casa, consagrado aos dramalhões televisivos desde 1951.
No dia 6 de junho, estreava o episódio 74 do anime, o capítulo inaugural da Saga de Asgard. Repudiada pelos telespectadores japoneses, a “Epopeia do Anel Dourado”, que conciliava a mitologia grega e a mitologia nórdica numa fase totalmente original da série de TV, foi recebida com festa pelas crianças brasileiras.
Se, no Japão, a veiculação contínua de 26 episódios exclusivos da animação foi um desastre, afugentando quase 3 milhões de telespectadores semanais e culminando na perda irreparável de 21,43% do público da Batalha das 12 Casas, no Brasil, a história seria outra: a mudança de cenário só faria aumentar o fenômeno.
Depois de usar um letreiro na transmissão dos episódios 78, 79 e 80 para informar os espectadores do horário extraordinário do capítulo 81, programado para a segunda-feira da semana seguinte, a emissora passou a veicular uma chamada do episódio inédito. Curiosamente, o trailer foi editado com cenas do episódio 82
Seguidos pelas revistas de maior tiragem semanal, os principais jornais do País tentavam explicar por que um programa infantil gerava tamanha comoção. Como aquele “desenho de mau gosto” resgatara a Manchete da extrema-unção, tornando-se o assunto mais comentado dos últimos tempos?… Instada pela edição de 12 de junho da Folha de S. Paulo a dar uma resposta a essa intrigante questão, a colunista Esther Hamburger, hoje catedrática e uma referência nacional em História do Cinema, capitulou, declarando-se incapaz de decifrar o fascínio que a atração — “uma produção mais que barata, com mera roupagem high-tech e narrativa truncada” — exercia sobre as crianças.
Detratora mordaz de Cavaleiros e dos animes que aportaram no Brasil em virtude da consagração da turma de Seiya, a crítica de programação televisiva emitiu um imarcescível atestado de ignorância em relação à indústria da animação. O princípio basilar do anime é a “imobilidade dinâmica”, a transmissão da ilusão do movimento pelo menor número possível de desenhos. Em contraposição ao processo de animação total dos filmes da Disney, fundamentado na confecção de 24 quadros por segundo, os animes geralmente são produções de animação limitada, baseada numa taxa diminuta de frames, proporção que normalmente varia de 6 a 12 desenhos distintos a cada segundo.
Reduzindo drasticamente os custos e o tempo despendido na produção, o mecanismo de limitação de quadros é o verdadeiro motor da veiculação dos animes na TV, permitindo que episódios de um número infindável de títulos sejam criados em escala industrial para a exibição periódica nas emissoras japonesas. Graças aos expedientes otimizados pelo legendário Osamu Tezuka no estúdio Mushi Production — técnicas engenhosas de aproximação e distanciamento da câmera, truques de movimentação exclusiva do cenário, métodos de reutilização parcial de células e até mesmo a repetição de sequências inteiras —, os animadores podem conceber imagens de alta complexidade, composições artísticas com uma densidade de detalhes e sombreamento que seria impensável nos filmes realizados mediante o processo de animação total.
Insensível à beleza dos personagens e à trama que opõe homens e deuses, a professora se dizia incapaz de desvendar o arrebatamento das crianças mesmo após divisar o sincretismo mitológico, o conflito eterno entre o bem e o mal, armaduras reluzentes, raios energéticos e o emprego da simbologia ocidental. Provando que é mais fácil desintegrar um átomo do que um preconceito, este “enigma da psique infantil” poderia evocar nos mais cínicos a aspereza da resposta de Breno aos patrícios que o bárbaro se divertia em humilhar no saque a Roma: “Ai dos vencidos!”
Nesse ínterim, desprezando a inépcia da crítica especializada — e as opiniões dos psicólogos a soldo da Manchete e das emissoras rivais —, a popularidade infatigável dos heróis se intensificou ainda mais. Essa febre só recrudesceu com o início da comercialização das fitas de vídeo dos filmes Saint Seiya e A Grande Batalha dos Deuses, na primeira quinzena de junho, e com a exibição nos cinemas do longa-metragem A Batalha de Abel, evento que marcaria a apoteose do seriado no Brasil.
Veiculada na TV e nas fitas destinadas à locação, a chamada com a voz de Hermes Baroli levou as fitas dos médias-metragens Saint Seiya e A Batalha dos Deuses a bater Forrest Gump e Coração Valente, vendendo 80 mil unidades em 1 mês
Os planos do lançamento dos 4 especiais de Cavaleiros em VHS foram gestados enquanto a agência Sempre Propaganda e a Alien Planetoys se engalfinhavam pelo merchandising da animação. No último trimestre de 1994, a distribuidora AB Vídeo (Alberto Bitelli International Films), surpresa com o potencial mercadológico do seriado, adquiriu os direitos de exploração audiovisual dos 4 filmes junto à Tōei Animation por uma barganha diante dos US$ 10 milhões que a empresa movimentaria com a venda das fitas no varejo e com a cessão dos direitos de exploração do mercado de locação à Flashstar Home Video.
Criando o selo Premier Filmes para a venda direta ao consumidor, a firma da família Bitelli, que se dedicava primordialmente à distribuição de fitas no mercado doméstico, também negociou os direitos de reprodução cinematográfica do longa-metragem A Batalha de Abel com o Consórcio Severiano Ribeiro & Marcondes, sacramentando a estreia da turma de Seiya nas telonas.
Para alívio dos espectadores do anime na Rede Manchete, os quatro filmes foram dublados pelo elenco regular da série, uma decisão que seria crucial para a venda de 500 mil fitas, uma proeza superada apenas pela irretocável superprodução O Rei Leão, o desenho animado mais bem-sucedido dos 71 anos de história da Disney.
Começando a chegar às locadoras no dia 8 de junho, os médias-metragens Saint Seiya e A Batalha dos Deuses já ocupavam o segundo lugar entre as fitas de vídeo mais procuradas no dia 15, antes que a locação se tornasse uma necessidade premente da criançada, que se regozijava com os últimos episódios da segunda fase (do capítulo 53 ao 84) do anime.
Em virtude do apelo dos títulos e da veiculação ostensiva de comerciais com a voz do dublador Hermes Baroli, no dia 22 de junho, ambos os filmes desbancaram O Rei Leão, assumindo as duas primeiras posições do ranking semanal da Video Software do Brasil, a associação que representava as videolocadoras do País. De acordo com o jornal O Estado de S. Paulo, A Batalha dos Deuses ostentava a primeira colocação, ao passo que a fita Saint Seiya ocupava a segunda posição.
Em paralelo, a Manchete travava outro tipo de batalha. Fazendo das tripas coração para prolongar seu derradeiro sopro de vida, a emissora aproveitara a estreia do episódio 53 para reduzir a cota semanal de episódios inéditos, reservando as sextas-feiras para reprisar o episódio do dia anterior. Além dessa medida, que estenderia a veiculação dos capítulos inéditos em 4 semanas, a divisão de programação optou por dividir os 62 episódios remanescentes em outras duas fases de exibição. No entanto, como ainda é vedado aos humanos parar o tempo, a segunda fase chegava ao fim no dia 23 de junho.
Com a reapresentação da segunda fase, iniciada no dia 26 de junho, a fissura do público por aventuras inéditas se agigantou, levando a uma busca desesperada pelos 2 médias-metragens disponíveis. Até o Ano-Novo, seriam vendidas 300 mil unidades, acrescidas de mais 200 mil dos títulos A Batalha de Abel e A Batalha Final, lançados em setembro.
Recordistas históricos do mercado de home video, os especiais dos cavaleiros também se consagraram como grandes campeões da locação, convertendo-se nas fitas de vídeo mais procuradas do gênero infantil até 1997.
Sem esmorecer, a reprise da segunda fase do seriado, que continha o desfecho da guerra fratricida contra os cavaleiros de ouro e o introito da Saga de Asgard, continuou liderando a audiência matutina no decorrer das férias de julho, aquecendo a criançada para a estreia da turma de Seiya nas telonas, marcada para o dia 14 do mesmo mês. Considerando que a ressurreição dos idolatrados combatentes que tombaram nas 12 Casas é crucial para o desenvolvimento do enredo do filme, a estreia acontecia num momento providencial.
Vencendo as objeções iniciais dos exibidores, céticos acerca das chances do anime diante de uma concorrência que incluía contendores como Pocahontas, Gasparzinho, Coração Valente e Batman Eternamente, o folclórico distribuidor Marco Aurélio Marcondes negociou a veiculação do longa-metragem exclusivamente em matinês, granjeando 209 salas pelo País, o maior número de cópias da história do mercado nacional.
Narrado pelo ator Jorgeh Ramos, dublador dos inesquecíveis vilões Jafar e Scar, o trailer também foi veiculado na Rede Globo
Motivada pelo iminente lançamento do filme, a edição de 13 de julho do jornal O Dia discorria sobre o desempenho arrebatador dos produtos licenciados e também sobre o flagelo das miniaturas falsificadas, uma consequência natural do sucesso acachapante do seriado. Assinado pelos jornalistas Luiz André Alzer e Paulo Ricardo Moreira, o artigo “Cavaleiros da Fortuna” revelava a data de estreia dos 30 episódios remanescentes na TV e os planos natimortos da Sony Music de comercializar um segundo CD brasileiro.
No dia seguinte, o longa-metragem foi forçosamente avaliado pelos críticos das redações mais importantes do País. Era improvável que uma avaliação pormenorizada da obra emergisse da inópia intelectual de nossos formadores de opinião, mas as análises beiraram a oligofrenia, extrapolando a margem de subjetividade inerente da crítica artística, uma discricionariedade tão imensa que permite a determinada pessoa ver uma obra-prima onde outras só enxergam um borrão de tinta.
Dado o ineditismo da exibição de um anime entre as superproduções das férias de julho, esperar-se-ia que os críticos, familiarizados com as estreias anuais da Disney, baseassem suas resenhas em cotejamentos com as mais novas atrações da companhia norte-americana. E quem poderia questionar a credibilidade de um review que censurasse o enredo, a sanguinolência ou mesmo a fluidez da animação?…
No entanto, ainda que a formosura magnetizante dos personagens delineados por Shingo Araki e Michi Himeno seja louvada em todo o mundo como um fato apodíctico, tão incontestável quanto a proposição de que 2 + 2 = 4, as análises de nossos “estetas apedeutas” gravitaram em torno de uma alegação quase unânime: a feiura dos desenhos! Guardadas as devidas proporções, seria como um crítico de cinema condenar o filme O Poderoso Chefão (1972) pela má atuação de Marlon Brando!
Escalado pelo Estadão, o veterano Luiz Carlos Merten vaticinou o êxito da produção nos cinemas ao recordar o fascínio da criançada durante a pré-estreia, ocorrida no dia 12, mas foi pouco elogioso no que tange à qualidade da animação: “O desenho é feio, tecnicamente mal-acabado. As figuras são chapadas. Não existe o uso da perspectiva como nos dos desenhos da Disney. A aventura bebe na fonte da mitologia. Invoca os mitos para (tentar) falar sobre os homens. Isto não é novidade.”
Titular da coluna de filmes do jornal O Globo, o articulista Carlos Heli de Almeida também incorreu nesse erro, figurando entre os proponentes de uma tese segundo a qual o filme dos guerreiros zodiacais, destituído da graciosidade das linhas e do realismo característico dos animais antropomórficos da Disney, consistia numa alternativa de segunda categoria, um desafio mambembe a uma suposta hegemonia estética das animações confeccionadas na América.
A despeito da insólita sensibilidade artística do profissional, a reportagem também registrou a vendagem copiosa do CD e das fitas de vídeo, atestando o estrondoso sucesso mercadológico do seriado. O consumismo desencadeado pela produção foi batizado, sem muita originalidade, de “cavaleiromania”.
Em consonância com a opinião da colega Esther Hamburger, publicada na Folha de S. Paulo no dia 12 do mês anterior, o escritor Inácio Araujo redigiu uma crítica-padrão, enfatizando o status de fenômeno infantil da produção, a falta de sofisticação mecânica da animação, a confluência de mitologias do enredo e o estrito código moral dos cavaleiros de Atena. Da mesma forma que os profissionais das demais redações do País, por ignorar a história dos animes, o conceito de animação limitada, a estética do gekiga, princípios do gênero shōnen e a política editorial da Shōnen Jump, o articulista elucubra uma suposta rivalidade com a Disney, uma “vitória japonesa contra Hollywood”.
Incapaz de entrever o requinte do traço de Shingo Araki e Michi Himeno, a sublime trilha sonora composta pelo maestro Seiji Yokoyama e a direção dinâmica de Shigeyasu Yamauchi, Araujo sintetizou o parecer dos críticos mais importantes da imprensa: “Os desenhos são funcionalmente toscos. Isto é, tiram partido de suas deficiências”.
Um evento memorável, o lançamento do longa-metragem alvoroçou toda a confraria de espectadores alucinados da série televisiva, arregimentando uma massa de mais de 500 mil pessoas na primeira semana de exibição nos cinemas brasileiros. Além do desempenho apoteótico nas bilheterias — suplantado apenas por Gasparzinho e Pocahontas entre os filmes infantis de 1995 —, o título também fez história ao provar que as animações japonesas, tradicionalmente relegadas ao cenário underground, eram produtos rentáveis, atrações capazes de lotar as salas dos cinemas convencionais.
No dia 19 de julho, a revista Veja incumbiu o jornalista Okky de Souza de cobrir o lançamento do longa-metragem. Especializado na crítica musical, o profissional tentou perquirir as razões do sucesso do anime, evocando o imaginário das crianças para explicitar os atrativos da obra e o consequente êxito dos produtos da marca. Embora sua falta de intimidade com a obra tenha ficado evidente no decorrer da análise, Okky foi mais condescendente que os demais críticos de cinema, detectando facilmente os elementos projetados para enfeitiçar a público infanto-juvenil.
Mesmo compreendendo a magia do filme, o jornalista corrobora a opinião dos colegas no que concerne à animação: “O desenho é tosco, coisa de amadores diante de qualquer produção dos estúdios Disney”. No entanto, trata-se de um raciocínio especioso, que não apenas ignora a gigantesca disparidade orçamentária e o tempo empregado nas produções mas também a formosura e o refinamento irrivalizáveis dos desenhos confeccionados para os especiais de Saint Seiya, uma benesse propiciada pelo número reduzido de quadros e pelo talento inigualável do plantel alocado no anime.
Chegando aos cinemas japoneses no dia 23 de julho de 1988, o longa dos cavaleiros foi concebido e finalizado em menos de 5 meses — o projeto foi chancelado no dia 15 de fevereiro, e o filme foi finalizado no dia 13 de julho —, enquanto as animações da Disney geralmente demandam anos de produção. No caso de O Rei Leão (1994), é de conhecimento público que apenas a sequência da debandada dos gnus consumiu 3 anos de dedicação dos animadores. Orçada em 45 milhões de dólares, a aventura de Simba contou com os progressos tecnológicos da computação gráfica e com o engajamento integral de 265 animadores, ao passo que somente 80 profissionais se encarregaram de todo o processo de animação de A Batalha de Abel.
Apesar das digressões infundadas sobre a qualidade da animação e das deduções equivocadas a respeito do cenário que ambienta a trama, a matéria trouxe dados importantes sobre a venda das miniaturas da Bandai. De acordo com o jornalista, já haviam sido comercializados 800 mil bonecos, pouco mais de 60% das unidades que a Samtoy venderia no País.
Mantendo a marcha inexorável da semana de estreia, a guerra cinematográfica dos cavaleiros de bronze contra o onipotente e onisciente Abel foi um sucesso monumental, premiando a aposta do Consórcio Severiano Ribeiro & Marcondes com uma bilheteria de 1,04 milhão de espectadores, um público quase 10 vezes superior ao do filme Supercolosso: A Gincana da TV Colosso, apresentado no mesmo ano.
Para compreender a proeza de Os Cavaleiros do Zodíaco — O Filme, é necessário ter em mente que Lamarca, a produção brasileira mais bem-sucedida de 1994, foi vista por 200 mil pessoas. Considerado um marco do período cognominado de “retomada do cinema brasileiro”, o filme Carlota Joaquina, Princesa do Brazil (6 de janeiro 1995) amealhou 1,28 milhão de pagantes em 11 meses de exibição. Chegando aos cinemas também em 1995, Menino Maluquinho – O Filme vendeu 397 mil ingressos.
Exultante com as vendas do primeiro álbum de figurinhas, a Multi Editora sincronizou o lançamento do segundo livro ilustrado da empresa com a estreia do longa-metragem nos cinemas. Chegando às bancas no início de agosto, o álbum, ainda mais exitoso que o anterior, dedicava seus 310 cromos autocolantes — vendidos em envelopes com 3 unidades por R$ 0,25 — à guerra dos cavaleiros contra Abel e seus sequazes. Tirando proveito do estouro do filme, que marcou o apogeu da série no Brasil, a Freegells também iniciou a comercialização das balas Zung, que se tornaram a sensação das férias escolares.
Em 28 de agosto, pouco mais de um mês após a exibição do episódio 84, a Manchete dava início à terceira fase de exibição, que consistia na difusão dos 30 episódios finais das aventuras de Seiya. No auge de sua glória e desfrutando de uma popularidade que há muito desafiava o senso comum e a psicologia das massas, o seriado transcendera os limites da dramaturgia televisiva, convertendo-se num fenômeno cultural.
Apesar do frenesi para assistir à continuação da Saga de Asgard, o público brasileiro definitivamente não estava pronto para se despedir de seus heróis. As crianças não viam — ou se recusavam a ver — que a estreia da terceira fase trazia consigo a contagem regressiva para o término do programa.
Chamada exibida após a estreia da terceira fase
Nas 6 semanas que se seguiram ao começo da terceira fase, a sanha pelos produtos licenciados aumentara exponencialmente, e artigos como as máscaras dos cavaleiros de bronze, um lançamento exclusivo da Estrela, as bicicletas da Caloi, que custavam RS 170,00 (R$ 1.608,05 em valores corrigidos), e os bonés promocionais da rede de fast food Bob’s vendiam mais do as empresas eram capazes de produzir.
Tendo perdido a chance de ganhar uma fortuna por dispor de “apenas” 400.000 miniaturas para vender em 1994, a Samtoy importou outras centenas de milhares de armaduras — junto com mais de 1,5 milhão de peças da franquia Power Rangers, constituída de brinquedos substancialmente mais baratos — na tentativa de guarnecer as provisões para o Dia das Crianças e as festas de fim de ano.
Contornando a objeção dos armadores de ancorar no Porto de Santos com sua megaencomenda, a distribuidora inundou o mercado com as emblemáticas action figures do seriado da Manchete, mas as lojas tornariam a ficar com o estoque zerado no Natal de 95. Antes que a febre dos caríssimos bonecos com armadura de metal se extinguisse, a empresa contabilizaria a comercialização de 1 milhão e trezentas mil unidades, movimentando mais de R$ 420 milhões em valores atuais.
No fatídico dia 17 de outubro, 13 meses e meio após o despretensioso desembarque de Seiya e seus amigos na TV brasileira, a série cumpria seu destino com a transmissão do episódio 114, uma joia digna de adornar o encerramento de um programa que se revelara uma autêntica força da natureza.
Com a audiência em seu nível mais alto e emprestando o nome aos brinquedos mais cobiçados pelo segundo ano consecutivo, o seriado tinha no Brasil o grand finale que lhe fora negado em sua terra natal e deixava os palcos da forma que convém a uma grande estrela: aplaudido de pé por uma plateia com lágrimas nos olhos e súplicas de bis.
Embora os especiais lançados em vídeo não fossem mais inéditos para quase ninguém, a emissora fecharia as cortinas das épicas batalhas dos cavaleiros com a exibição integral das quatro produções. Os médias-metragens Saint Seiya (87) e A Batalha dos Deuses (88) reforçariam a esquálida programação de fim de ano do canal, indo ao ar nos dias 10 e 17 de dezembro, respectivamente. Os dois últimos filmes chegariam às telinhas em 1996.
Além de reprisar o anime até enfastiar o público — como fizera com Jaspion, Changeman, Metalder, Lion Man e todos os puídos títulos de tokusatsu exibidos desde a década de 80 —, só restava à Manchete embarcar numa jornada desesperada em busca de outra tábua de salvação, um sucessor à altura de Os Cavaleiros do Zodíaco. Dessa forma, já engajada na prospecção de animações promissoras para a grade de programação de 96, a emissora iniciaria a primeira reprise integral do seriado em 18 de dezembro.
Chamada de exibição de Saint Seiya e A Batalha dos Deuses
Ante o milagre de Seiya na Manchete, os canais nacionais abriram os olhos para o potencial dos desenhos japoneses, dando início a uma nova era da programação infanto-juvenil. Sem as amarras da proibição total da publicidade endereçada às crianças, implementada em 2014, a fórmula parecia infalível: os títulos teriam no Brasil um sucesso proporcional ao obtido no mercado nipônico. Assim, com a existência de produções animadas que registravam o triplo da audiência de Os Cavaleiros do Zodíaco na TV japonesa, o céu era o limite.
Comprando essa receita cartesiana de licenciadores como Carlos Tomita, que investira o equivalente a 9 milhões de reais em valores atuais nos direitos de Guerreiras Mágicas de Rayearth e esperava desbancar a Barbie para gerar um faturamento de cerca de R$ 300 milhões com bonecas do seriado, a Manchete, o SBT, a Record, a Bandeirantes e a Rede Globo passariam a incorporar uma vasta gama de animes em sua programação, desde cópias mambembes de Cavaleiros — Shurato e Samurai Warriors — a títulos que haviam alcançado ainda mais sucesso na TV japonesa, como Sailor Moon, Dragon Ball, Yū Yū Hakusho, Pokémon, Samurai X e Dragon Ball Z.
Com a série dos cavaleiros de bronze desbravando o oceano de possibilidades latentes para os animes, o SBT passou a veicular o novíssimo Street Fighter II V (95), seriado baseado no jogo de luta homônimo que havia conseguido 71,27% da audiência de Saint Seiya no Japão. No dia 29 de abril de 1996, estreava na Manchete a primeira temporada de Sailor Moon (92), que amealhou 1,8 milhão de espectadores a mais que Cavaleiros na sua pátria.
Persuadido pelas projeções demasiadamente otimistas de Tomita, o SBT adquiriu Guerreiras Mágicas de Rayearth (94), um anime para meninas que havia registrado a mesma audiência média de Street Fighter II V no arquipélago japonês. O seriado estreou no dia 6 de maio, e seus bons resultados logo convenceram Sílvio Santos a exibir Fly, o Pequeno Guerreiro (91), um seriado que obtivera 5% a mais de audiência que Cavaleiros no Japão.
Por sua vez, a Manchete recorria a outra tradição do canal: a transmissão de clones sem alma. Assim como tentara mimetizar o estrondoso sucesso da novela Pantanal (90) com a malfadada Amazônia (91), a emissora passaria a exibir 2 animes “inspirados” em Cavaleiros: Shurato (89), que mesclava a mitologia hindu e guerreiros indumentados com armaduras de metal, e Samurai Warriors (88), que inseria guerreiros com armaduras de metal num universo baseado no xintoísmo e no Japão feudal.
Estreando no Brasil em maio, Shurato, que havia atraído 54% do público de Cavaleiros em sua terra natal, registrou 6 pontos de audiência nos dois primeiros meses de exibição. Com 48% da audiência auferida pelo anime de Seiya na Terra do Sol Nascente, Samurai Warriors chegaria ao País em junho, mas jamais obteria a mesma repercussão que Shurato, que teve sua composição capitaneada pelo roteirista-chefe de Saint Seiya.
Os brasileiros davam mostras de que as produções japonesas haviam caído no gosto popular e, embora as animações que estrearam na esteira de Os Cavaleiros do Zodíaco não tenham feito sucesso suficiente para escrever seus nomes na história da TV brasileira, todas registraram índices favoráveis. Só faltava testar Dragon Ball (86). Os astros, a lógica aristotélica e o senso comum indicavam que este seria o anime a destronar o fenômeno da Manchete.
Cortejando a Tōei Animation desde 95 e com as portas do SBT abertas, a Alien International finalmente adquiriu os 60 primeiros episódios do título, que figurou entre os 4 animes de maior sucesso da TV japonesa durante sua difusão. Também exibido entre 1986 e 1989, Dragon Ball granjeara mais que o dobro (120,7%) dos espectadores de Saint Seiya no Japão e já havia se convertido na marca mais rentável da “Disney do Oriente”.
No entanto, para desespero de Tomita, o radiante futuro do pequeno Goku e todos os prognósticos quiméricos para os produtos licenciados do anime seriam arruinados pelo SBT. Indo ao ar em agosto de 1996, a série acabaria exilada na programação de sábado antes que pudesse ganhar tração e arregimentar as esperadas hostes de espectadores. Mesmo registrando 8 pontos no Ibope e batendo a Globo ocasionalmente, Dragon Ball não chegaria nem perto de rivalizar com Cavaleiros.
A primeira incursão de Dragon Ball na TV brasileira foi prejudicada pela incúria do SBT
Enquanto o SBT boicotava as fantásticas aventuras do pequeno Goku, a Manchete costurava outra permuta com o infatigável Toshihiko Egashira, que havia trazido Shurato em 96. A nova aposta do “pai” de Jaspion, Changeman e Flashman era o seriado Yū Yū Hakusho (92), um anime com 112 episódios que havia obtido 85% a mais de audiência que Cavaleiros no Japão.
Divertidíssimo e imbuído de quase todos os elementos que transformaram Os Cavaleiros do Zodíaco numa lenda tupiniquim, o seriado foi ao ar em março de 97 e rapidamente caiu no gosto da garotada. A coqueluche esperada, porém, não veio, e a novela Xica da Silva, que havia estreado em setembro de 96, continuou no posto de atração mais assistida da casa.
Antes de seus estertores finais, a Manchete ainda exibiria Supercampeões (94), um remake com 47 episódios de Captain Tsubasa, o famoso anime futebolístico de 1983. A série seria lançada em setembro de 97 e, apesar do progressivo agravamento da crise financeira do canal, também geraria bons índices de audiência. No dia 10 de maio de 99, com uma dívida impagável e paralisações intermináveis de atores, jornalistas e técnicos de transmissão, a emissora sairia do ar para sempre, levando consigo um pedaço importante da história da televisão brasileira.
No mesmo dia que a Rede Manchete apagava suas luzes, a Record dava início a outra febre: Pokémon (97), série infantil que se converteria num fenômeno mundial com mais de 1.200 episódios. Virtualmente infinito e dotado de um apelo mercadológico sem limites, o anime desencadearia uma autêntica histeria, chegando muito perto de emular o sucesso de Cavaleiros.
O ano de 1999 traria outras surpresas. Após a Globo lançar Samurai X (96), que tinha obtido uma audiência 27,5% superior à de Cavaleiros no Japão, a Band colocou no ar Dragon Ball Z (89), um blockbuster com 118% a mais de audiência que Saint Seiya em seu país de origem. Mutilado para se adequar ao programa de classificação livre da Globo, Samurai X teria seu potencial tolhido, mas Dragon Ball Z se tornaria um longevo campeão de audiência, fascinando o público brasileiro em 3 emissoras: o Cartoon Network, a Band e a poderosa Rede Globo.
Após o televisionamento dos 291 episódios de Dragon Ball Z e a exibição bem-sucedida de Dragon Ball, Dragon Ball GT (96), Digimon (99), Yu-Gi-Oh! (98) e InuYasha (2000), a dispersão da internet solapou a relevância da mídia tradicional, decretando o fim da era dos “fenômenos televisivos”, mas um mistério de tempos analógicos persiste: por que animes incomparavelmente mais populares no Japão foram incapazes de deflagrar no Brasil a convulsão social e as cifras milionárias de Os Cavaleiros do Zodíaco?
Imputando o sucesso sem precedentes de Os Cavaleiros do Zodíaco a uma estratégia agressiva de marketing e à publicidade predatória dos bonecos da Bandai, os veículos de comunicação falharam miseravelmente na tarefa de apurar as qualidades do anime. Figurando em primeiro lugar entre as animações televisivas no Anime Grand Prix do biênio 87-88, a série foi o primeiro título originário da antologia Shōnen Jump a aportar no nosso país. E é nessa origem nobre que se esconde a chave do arrebatamento das crianças brasileiras.
Visando os garotos e adolescentes, o mesmo público-alvo das renomadas antologias Shōnen Magazine e Shōnen Sunday, o semanário Shōnen Jump veio ao mundo em 1968, substituindo a revista Shōnen Book, publicada pela Shūeisha desde 1959. Sem restrição de conteúdo e impulsionada pelo erotismo insólito de Harenchi Gakuen, uma comédia picante de Gō Nagai, e por Otoko Ippiki Gaki Daishō (Hiroshi Motomiya), um dos trabalhos que estabeleceram as bases do gênero shōnen contemporâneo, a Jump cresceu de forma vertiginosa, saltando de uma tiragem inicial de 100 mil exemplares para mais de 1 milhão em 3 anos.
Adaptando-se rapidamente às predileções dos leitores por intermédio das extensivas pesquisas de opinião realizadas a cada volume e assimilando as tendências que faziam sucesso nas publicações concorrentes, a antologia fundeou sua política editorial nos temas amizade, esforço e vitória, tomando a liderança do mercado da Shōnen Magazine em 1973.
Em contraposição aos comics estadunidenses, desde seus primórdios, a Jump optou pela publicação de novelas com cronologia sequencial, mangás com início, meio e fim. Na prática, a revista quadriniza folhetins, trazendo um novo capítulo das obras a cada edição. Se a História era o prego no qual o inigualável Alexandre Dumas pendurava seus romances, a filosofia de vida dos homens é a bússola que norteia cada um dos títulos que integram o semanário.
A popularidade retumbante da tragédia marcial Hokuto no Ken (1983), que levou a antologia à inimaginável tiragem de 4 milhões de exemplares, culminou no ocaso das obras baseadas em esportes e ídolos, inaugurando a era dos mangás protagonizados por artistas marciais dotados de superpoderes — emanações de energia rebatizadas com uma profusão de nomes distintos, como “tōki” (aura de batalha), “cosmo”, “ki”, “hamon”, “chacra” e “nen”. Fruto dessa natureza autofágica do semanário, Saint Seiya nasceu na primeira edição do ano de 1986.
A obra foi concebida por Masami Kurumada, um célebre expoente do gênero nekketsu, caracterizado pelo brio varonil e sangue quente dos personagens. Obcecado pelo ideário masculino de Otoko Ippiki Gaki Daishō, Kurumada se especializou no pletórico universo dos homens, o mundo feérico dos arquétipos que povoam o imaginário de todos os garotos. Esmagada pela miserável condição humana durante a vida adulta, essa dimensão etérea é diferente do machismo e da simples busca pela glória da supremacia dos punhos; trata-se da imagem primordial de como um homem deve ser. É um sentimento ancestral, uma voz inconfessável que impele cada menino deste mundo a ser o mais forte, o mais valente — um belicismo a serviço do amor, da amizade e da fidalguia, e não da violência arbitrária.
Judoca amador e entusiasta de todas as modalidades de combate corpo a corpo, o intrépido Kurumada enviou seus croquis à Shūeisha antes mesmo de se graduar no ensino médio, mas teve de se contentar com uma vaga de assistente no mangá de beisebol Samurai Giants (1971), auxiliando o mestre Kō Inoue nos desenhos por 2 anos e meio. Como era impossível comer e pagar o aluguel com o ordenado de assistente, trabalhou na limpeza de edifícios durante todo o longo período de aprendizado.
Obrigado a fazer relutantes concessões em seu trabalho de estreia, Sukeban Arashi, a espalhafatosa tragicomédia de uma garota de coração ardente, o jovem autor ingressou na Shōnen Jump em 1974 e, mesmo com a publicação errática e o consequente cancelamento do título, o artista conseguiu impactar os leitores, imprimindo sua marca no mundo dos autores profissionais.
Pragmaticamente consciente de suas limitações como desenhista, o “fazedor de mangás” apostou no inegável talento como novelista para replicar nos quadrinhos o arrebatamento das crianças de sua geração com as superlutas do tokusatsu dos anos 50 e 60, quadrinizando tramas de tirar o fôlego. Foi graças a esse expediente que o autor conquistou seu lugar na plêiade de artistas famosos da antologia com o mangá de pugilismo Ring ni Kakero, publicado entre 1977 e 1981.
Um gekiga amargurado da mesma linha que os consagrados trabalhos esportivos de Ikki Kajiwara nos anos 60, o título evoluiu drasticamente para ganhar os corações e mentes dos leitores, passando à vanguarda do realismo fantástico no decorrer de seus 242 capítulos.
A inserção de homens de carne e osso com força sobre-humana e técnicas de luta espetaculosas na empobrecida realidade dos cidadãos de segunda classe do Japão ajudou a moldar o shōnen contemporâneo, fazendo de Ring ni Kakero um trabalho paradigmático que influenciaria a geração estelar de Akira Toriyama, Hirohiko Araki e Yoshihiro Togashi.
Competindo com obras da envergadura de Sawayaka Mantarō, KochiKame, Asatarō-Den, Kinnikuman e Cobra, Ring ni Kakero carregaria o estandarte de mangá hegemônico da revista até o surgimento de Dr. Slump (1980), mas o boom da transposição de obras da Jump nos anos 80 chegaria tarde demais para a serialização, melindrando Kurumada para o resto da vida.
No início de 1982, enquanto Dr. Slump & Arale-Chan (81) e outros contendores tardios de Ring ni Kakero rompiam as barreiras dos quadrinhos para se tornar líderes de audiência no horário nobre da TV japonesa, Kurumada se jogava de cabeça na concepção de uma nova obra: Fūma no Kojirō. Tirando proveito da mística dos ninjas, a obra misturava ação estudantil, técnicas assassinas com nomes chamativos e lutas de morte com espadas de madeira (bokutō).
Convicto de que teria um hit instantâneo ao partir diretamente para as superlutas e poupar os leitores de um desenvolvimento longo e maçante, o autor tentou projetar o encantamento dos duelos extremos de Ryūji Takane e Jun Kenzaki na rivalidade de Kojirō e Musashi Asuka, mas foi forçado a jogar a toalha após 96 capítulos.
Ao final de 6 meses de descanso e ponderação, o artista resolveu se devotar ao trabalho com o qual sempre sonhou: Otokozaka, o mangá que foi impedido de desenhar em sua estreia na Shōnen Jump, em 1974. A trama focava o desejo de supremacia masculina de Jingi Kikukawa, um delinquente juvenil inspirado em Mankichi Togawa, o emblemático protagonista de Otoko Ippiki Gaki Daishō, a grande obra de Hiroshi Motomiya, o herói de sua adolescência.
Esperando que os leitores fossem arrebatados pela filosofia masculina dos personagens e pelas violentas guerras entre suas facções, o autor infundiu sua própria essência no trabalho, mas acabou aprendendo da forma mais difícil que o público não tinha interesse num reboot de Otoko Ippiki Gaki Daishō. A obra foi terminantemente cancelada no capítulo 30, acendendo a luz vermelha para os masamistas: a carreira do autor poderia não sobreviver a 3 fracassos consecutivos.
Frustrado com o cancelamento de Otokozaka e com o fantasma do ostracismo à porta, Kurumada sabia que não poderia se dar ao luxo de fracassar no próximo trabalho; o tema e o idealismo não importavam mais. Engolindo a dor de ver o sonho que o motivara a se tornar um mangaka ruir como um castelo de cartas, ele concluiu que apenas o sucesso dirigiria seus passos. Assim, Saint Seiya nasceria dos escombros do tributo pessoal do autor à obra magna de Hiroshi Motomiya.
Nos cenários iniciais da concepção da trama, o novelista pensou em aproveitar o frisson que Karate Kid (1984) causava mundo afora para utilizar a arte marcial nascida em Okinawa numa saga que combinaria as faíscas esvoaçantes das superlutas kurumadianas com um enredo similar ao de Kurenai Sanshirō (1969), animação conhecida como O Judoca pelos brasileiros. Nesse estágio, ele aventou um ponto de partida no qual o protagonista sairia à procura de respostas ao encontrar o corpo sem vida do pai, o mestre de um dojo de caratê na zona periférica de Tóquio.
Persuadido pelo novo editor, Hideyuki Matsui, a abandonar os uniformes escolares, a marca registrada dos delinquentes de seus mangás de ação escolar, o imaginativo Kurumada intuiu que os personagens de seu novo mangá precisariam de proteções corporais para sobreviver ao impacto devastador das técnicas de luta que tinha em mente. Em face dessa necessidade, ele resolveu incrementar a fórmula de suas novelas eletrizantes com um recurso visual que cativasse os meninos do primário desde o início, engendrando, como um complemento fashion, armaduras que encampavam os formatos de constelações. Essa ideia genial levaria à mudança do cenário e ao desenvolvimento da cosmogonia particular da obra.
O amalgamento das emoções tempestuosas dos jovens de belas feições do universo kurumadiano com a astrologia e vestimentas mitológicas — inicialmente confundidas com trajes de ficção científica — aturdiu tanto os leitores da Jump que a Tōei Dōga, subvencionada pela fabricante de brinquedos Bandai, iniciou os preparativos para a transposição do título em junho, contatando o autor antes do lançamento do primeiro volume encadernado do mangá.
Com a impossível missão de enfrentar o programa de historinhas infantis Manga Nippon Mukashibanashi, campeão inconteste da TBS com um público semanal de quase 22 milhões de espectadores, ficou pactuado que Saint Seiya seria transmitido aos sábados, das 19h às 19h30, pela TV Asahi, sócia de longa data do estúdio de animação. Para liderar o projeto, a Tōei Dōga destacou o produtor veterano Yoshifumi Hatano, um profissional incansável movido por uma crença mais que perfeita para a transposição de uma obra que dependia da beleza dos personagens para funcionar: “Se os desenhos não forem lindos, não é anime”.
Capitalizando a base feminina dos 5,6 milhões de espectadores do programa a ser substituído na TV Asahi, a animação Hikari no Densetsu (1986), ambientada nas desventuras juvenis da ginasta rítmica Hikari Kamijō em busca do amor e da medalha de ouro nas Olímpiadas de Seul, o produtor Hatano arregimentou um plantel inigualável para o universo de belas lutas do mangá de Masami Kurumada.
Graças ao dinheiro da Bandai, ao vigor dos jovens da equipe técnica e à incrível ética de trabalho de homens determinados como Hiroshi Takeda, agente de produção da Tōei, e Masayoshi Kawata, produtor da TV Asahi, Saint Seiya saiu do papel em tempo recorde. Deslumbrante, o anime estreou no dia 11 de outubro de 1986, quatro meses após a celebração do contrato com o autor.
Baseado nos desenhos sublimes do mestre Shingo Araki, character designer e diretor de animação reverenciado como precursor da moda dos personagens bonitos da década de 70, o seriado foi dirigido pelo mundialmente famoso Kōzō Morishita, atual CEO da companhia e um dos profissionais responsáveis pela direção dos animes de ação como a conhecemos.
Além de ostentar a mais bela trilha sonora da história dos animes, as músicas excelsas compostas pelo maestro Seiji Yokoyama, a série ainda contou com o legendário roteirista Takao Koyama, um autêntico patrimônio cultural do Japão, na chefia da composição do enredo. Ao mitigar os resquícios de delinquência juvenil da obra-mãe e suprimir o parentesco dos cavaleiros de bronze, meios-irmãos nos quadrinhos, o senhor Koyama estreitou os chamejantes laços de amizade dos heróis, magnificando o altruísmo dos protagonistas.
A confiança que esses homens de vontade inquebrantável depositam nos companheiros e sua abnegação camicase para morrer pela amizade comovem até o mais embrutecido dos homens, pois nos fazem querer acreditar naquela voz pueril que o tempo calou na nossa alma, nos sentimentos que o confronto com a realidade nos fez tachar de utopia.
No que se refere à transposição da imagem do mangá, o processo de animação não poderia ter sido mais venturoso. Redesenhados pelos artífices magistrais da adaptação de Rosa de Versalhes (1979), os personagens e as vestimentas sagradas são um monumento à perfeição artística, um retrato soberbo da estética helênica e das fábulas romantizadas dos cruzados, figuras glamorosas paramentadas com armaduras reluzentes que habitam o imaginário dos ocidentais desde o século XI.
Levando o conceito kurumadiano de “beautiful wars” a outro nível, as linhas vigorosas do mestre Shingo Araki e a beleza mesmerizante do traço da mestra Michi Himeno exalçaram o coração nobre dos combatentes, que expressam nos olhos a dor de tirar vidas igualmente valorosas. A magia do trabalho da dupla também se manifesta na fluidez dos movimentos, nos espasmos musculares, no vaivém dos cabelos, no encaixe simbiótico dos trajes míticos e no martírio dos jovens no decorrer das batalhas.
Um legado da participação do mestre Shingo Araki na animação de Kyojin no Hoshi (1968), o hiper-realismo permite que o público sinta na pele o sofrimento dos personagens. Deformando-se numa agonia excruciante a cada ataque, o semblante formoso dos rapazes exprime a potência devastadora das técnicas secretas, transmitindo aos espectadores toda a obstinação desses combatentes estoicos.
Inspirada em clássicos do faroeste e nos filmes de época do cineasta Akira Kurosawa, a atmosfera onírica dos duelos foi meticulosamente arquitetada pelo senhor Kōzō Morishita, o homem por trás da concepção de todos os componentes das cenas de ação do anime. Alcunhado de “Action no Morishita”, o diretor de núcleo elaborou quase todos os aspectos da mecânica dos combates, desenvolvendo, inclusive, uma nova tecnologia de processamento óptico com o intuito de expressar a luminescência da aura emanada dos golpes e o brilho das indumentárias, emulando todo o esplendor das armaduras medievais que a literatura imortalizou.
Para aumentar a tensão do público no clímax dos duelos, o senhor Morishita concebeu uma brilhante adaptação da técnica convencionalmente chamada de “reserva” [溜め], um recurso estilístico empregado originalmente nos duelos de samurais para impedir que o espectador vislumbre o vencedor na arremetida final dos contendores.
Evocando as emoções ensejadas pela cena icônica de Toshirō Mifune e Tatsuya Nakadai em Tsubaki Sanjūrō (1962), esse artifício revolucionou o poder de expressão dos combates corpo a corpo nos animes, elevando a adrenalina da audiência a níveis estratosféricos nos duelos originais da animação.
A trilha sonora do seriado e dos filmes é uma maravilha por si só. Mesclando a grandiosidade das óperas de Wagner, a melancolia das sonatas de Beethoven e a atmosfera divinal das composições de Mozart e Dvořák, as melodias do maestro Seiji Yokoyama arrebatam o espírito humano, combinando-se de forma sinestésica à graciosa animação do Araki Pro. e às emoções avassaladoras do mundo criado pelo mestre Kurumada.
A voz divina da soprano Kazuko Kawashima embalou os momentos mais emocionantes do seriado
Nacionalmente reconhecido como um virtuose das canções incidentais, o maestro contou com a confiança da Nippon Columbia e do produtor Yoshifumi Hatano para despender recursos vultosos na execução das músicas, presenteando a humanidade com melodias inebriantes, obras de arte que prescindem da própria animação para enfeitiçar os ouvintes. As propriedades alquímicas da trilha sonora uniformizam as disparidades dos traços que compõem os 114 capítulos, conferindo coesão à imagem do anime.
Valendo-se da pujança de coros masculinos e dos cânticos entoados pela voz celestial da senhora Kazuko Kawashima, as melodias do maestro Yokoyama infundem doçura, solenidade, tristeza e magnificência, reverberando na alma de todos que assistem às tragédias que recaem sobre Seiya e seus amigos. Embalados por essa suntuosa trilha sonora, os frêmitos de dor, os dilemas existenciais de homens que se opõem à vontade dos deuses, as atribulações de Atena e o sangue que jorra dos ferimentos dos combatentes adquirem proporções monumentais, convertendo as escaramuças dos heróis em sequências épicas, cenas que marcam os espectadores para sempre.
Originalmente composta para o segundo média-metragem da série, a melodia Megami o Sukue é perfeita para expressar a grandiosidade das lutas de morte dos cavaleiros
Sincretizando imperativos que cativam os homens desde a aurora da civilização, a obra televisiva reúne os ingredientes irresistíveis da filosofia masculina que sacralizaram clássicos indisputáveis da literatura universal, como as façanhas mitológicas de Aquiles e Heitor, narradas na Ilíada, a coragem dos 108 proscritos do romance chinês A Margem da Água e o expressionismo idílico dos duelos acachapantes do invencível Musashi na obra-prima de Eiji Yoshikawa.
As alegorias universais e o retrato cru das facetas mais recônditas da masculinidade fazem a produção transcender tempo e espaço, permitindo que os ocidentais identifiquem nela tópicos que provavelmente jamais passaram pela cabeça do autor no processo de criação do título, como a amizade indissolúvel dos mosqueteiros de Dumas, a ferocidade dos burgúndios do poema A Canção dos Nibelungos ou o proverbial cavalheirismo do sultão Saladino, inspiração do Código de Cavalaria da Europa medieval.
Documentário Seiya History: A História de Saint Seiya (2004)
Embora só tenha sido capaz de bater o programa Manga Nippon Mukashibanashi em 2 oportunidades ao longo de 114 semanas de exibição, a preferência de pouco mais de 10% dos lares japoneses e a confluência do estrondo nos quadrinhos com um sucesso mercadológico sem precedentes fizeram do seriado um fenômeno da cultura popular. A venda astronômica de 5 milhões de miniaturas da Série Saint Cloth garantia um cheque em branco da Bandai para a continuação do anime; porém, o afobamento da Tōei para iniciar a transposição do título finalmente cobraria seu preço.
Por ter alcançado a cronologia do mangá já nas primeiras 15 semanas de exibição, o anime teve seu desempenho bastante afetado pela criação de diversos personagens e acontecimentos inexistentes na obra-mãe; no entanto, quando o epílogo da Batalha das 12 Casas foi ao ar, simplesmente não havia mais histórias para animar. O episódio 73 foi veiculado no dia 16 de abril de 1988, apenas 33 dias após a publicação oficial do capítulo correspondente na Shōnen Jump, em 14 de março.
Considerando que um episódio de 20 minutos demandava 3 meses de confecção e geralmente englobava o desenvolvimento de cerca de 3 capítulos de 20 páginas, o estúdio só tinha 2 opções: suspender a veiculação do seriado ou produzir episódios exclusivos. Com base no grande sucesso da Batalha das 12 Casas, a Tōei tomou a audaciosa decisão de produzir uma fase totalmente original a fim de sanar o flagelo da falta de estoque de quadrinhos.
O projeto da Saga de Asgard foi concebido durante a produção do média-metragem A Grande Batalha dos Deuses, e a ótima recepção da trama, uma incursão do senhor Koyama aos fascinantes mitos da Escandinávia, só fez aumentar a convicção de que uma fase original com 6 meses de duração era viável, apesar de o público da Shōnen Jump ser historicamente refratário a episódios inexistentes na antologia.
Numa tentativa de “legitimar” a iniciativa da Tōei, o mestre Kurumada expandiu o universo da obra com a introdução de combatentes extrínsecos à mitologia grega no capítulo especial Natacha do País do Gelo, publicado junto com o penúltimo capítulo da Saga do Santuário; porém, não era preciso ser astrólogo nem trilhar o espinhoso caminho até Star Hill para saber que as estrelas prenunciavam um desastre. A verdade é que os leitores da Shōnen Jump constituem a espinha dorsal da audiência, e esses espectadores anseiam por ver como as cenas impactantes dos quadrinhos ficarão na telinha. O público até se diverte com as tramas originais dos filmes produzidos para o Tōei Manga Matsuri, mas só admite no anime semanal o conteúdo serializado na Shōnen Jump.
Abrilhantada com um enredo fabuloso, com músicas esplêndidas e com personagens originalmente delineados pelos mestres Shingo Araki e Michi Himeno, a Saga de Asgard chegou aos lares japoneses no dia 23 de abril de 88, 33 dias após a estreia oficial da Saga de Posseidon nos quadrinhos, mas o resultado foi catastrófico: o público não aderiu à fase original, e a venda de miniaturas da Bandai estagnou. Apesar dos esforços hercúleos do estafe, a audiência do programa despencou 20,5% entre a transmissão dos episódios 79 e 99. A queda vertiginosa na venda de bonecos comprometeu o patrocínio, e o estúdio decidiu encerrar o anime, limitando o arco do Imperador do Oceano a 15 episódios.
A difusão da Saga de Posseidon só atestou que a debandada dos telespectadores era irreversível. A despeito da dedicação extensiva dos mestres Araki e Himeno à direção de animação e imagens-chave de 4 episódios da última fase do anime, a audiência degringolou, caindo mais de 8% em relação à média da Saga de Asgard, uma sangria de quase 900 mil espectadores semanais. Saindo de cena pela porta dos fundos, a série de televisão chegou ao fim no dia 1º de abril de 1989.
Nesse mesmo período, os quadrinhos começavam a sucumbir à competição encarniçada com os best-sellers da era de ouro da Shōnen Jump. Manifestando os primeiros sintomas de uma progressiva perda de prestígio a partir de 1989, o mangá acabaria despencando para o fundo da tabela de conteúdo da antologia no início de 1990 — um expediente do departamento editorial para constranger os autores de trabalhos que perderam a preferência dos leitores. Definitivamente, não havia mais espaço na revista para a Saga do Céu.
Entendendo o recado da Shūeisha, o mestre Kurumada foi compelido a terminar o mangá na Saga de Hades, despedindo-se do semanário no volume 49. Sem direito à capa, a obra teve seu capítulo final publicado na primeira edição da revista V Jump, datada de 12 de dezembro de 1990. Embora a Tōei tenha projetado a conversão dessa última fase dos quadrinhos em OVAs, os planos não se materializariam até 2002.
No último capítulo do mangá, o autor legou uma mensagem de despedida aos fãs da obra. Ele acreditava que o sonho que havia sonhado com o público japonês por 5 anos estava para se tornar uma memória; no entanto, ele estava errado. Nem o próprio Kurumada era capaz de aferir o impacto das crônicas da turma de Seiya na vida da imensa legião de admiradores em todo o mundo.
Assim como não se limitou aos 5 anos de publicação do mangá no arquipélago japonês, 29 anos após a difusão do episódio derradeiro na TV Manchete, o sonho continua bem vivo no Brasil. Os brasileiros assistiram a todos os capítulos da série clássica em apenas 411 dias, mas continuam incapazes de dizer adeus ao grande sonho que nasceu da caneta de Masami Kurumada em dezembro de 1985.
Em termos de produto, a animação é um monumental case de sucesso. A trajetória apoteótica de Saint Seiya em praticamente todos os países em que o anime foi exibido apenas corrobora a elevada qualidade da obra. Astuciosamente rebatizada de Les Chevaliers du Zodiaque para conjurar a simbologia dos cavaleiros templários, os lendários combatentes da ordem fundada pelos franceses em 1119, a série estreou na França em 6 de abril de 1988 — no auge da popularidade no Japão —, convertendo-se instantaneamente numa paixão nacional. Exportada para a Itália, em 30 de março de 1990, e para a Espanha, em 8 de julho do mesmo ano, a atração teve a mesma recepção febril, batendo recordes de audiência, esgotando milhões de miniaturas da Bandai e fomentando a criação de revistas especializadas em programação nipônica.
Livre da censura imposta à veiculação dos episódios na Europa — excisão que ficava mais severa à medida que a série era retransmitida —, o anime finalmente cruzou o Atlântico, chegando à TV mexicana em novembro de 1992. O formato de novela das aventuras dos cavaleiros hipnotizou o público mexicano, suplantando a repercussão no Velho Continente e servindo de prelúdio para o fascínio inaudito que o seriado despertaria no Brasil e em diversos países da América Espanhola, a exemplo do Peru, da Argentina, do Chile e da Colômbia.
Numa época em que a grande mídia qualificava os traços característicos das produções japonesas de “incômoda opção estética”, a série conquistou o povo, levou mais de 1 milhão de pessoas aos cinemas, vendeu 370 mil discos, inaugurou um segmento editorial próprio, abriu espaço na TV para uma profusão de animes, tirou os dubladores da obscuridade e ocupou, até o lançamento do filme Titanic, a posição de segunda franquia mais bem-sucedida da história do mercado de home video, gerando, com a venda de meio milhão de fitas, um faturamento de 10 milhões de dólares.
Embora o furor de 30 anos atrás tenha arrefecido, a presença constante de Os Cavaleiros do Zodíaco no cotidiano dos velhos e dos novos entusiastas de animes, o arroubo que virou transe coletivo durante a produção da Saga de Hades, o retorno exitoso da série clássica ao País, em 2003, e o sucesso dos mangás, DVDs e demais produtos da marca atestam que a animação se arraigou em nossa cultura e continua muito viva no coração dos brasileiros.
Um fenômeno nunca antes vivenciado e jamais repetido na TV brasileira, o anime saiu do ar no final de 1997, mas jamais deixou o coração das crianças que tiveram seu caráter moldado pelas lições de Seiya e seus amigos. Para essa legião de aspirantes a cavaleiro, o seriado saiu do tempo para entrar na História.
7 Comentários
Esse artigo ou matéria daria um livro.
meus parabéns, os detalhes são certeiros e claros em relação a toda febre colossal que foi este anime nos anos 90.
Uma mescla de sentimentos e nostalgia caminha conosco durante toda a leitura por toda essa estrutura textual.
incrível!
Me dê sua força Pegasus!!!
Alegra-me saber que você gostou da matéria, meu amigo. É sempre um prazer discutir esses assuntos com você. Acho que o texto aborda todos os acontecimentos realmente relevantes na trajetória da série por aqui. Eu poderia incluir dados da reestreia do anime, mas eu desprezo a versão redublada, e a repercussão da série foi infinitesimal, se comparada à histeria de 94-95. Como a matéria já está relativamente grande, pensei que cansaria os leitores com dados de tão pouca importância.
Mas cabe sim em uma parte 2.
seria legal informações relativas aos dvd’s da PlayArte , audiência da Tv Bandeirantes e as movimentos dos fãs na segunda exibição de um longa-mentragem que rolou nos cinemas com filme prológo do céu.
Meu amigo, estou com lágrimas nos olhos!
Mais uma matéria magnífica e digna de nossos Santos Athenenses, cujo conteúdo ardente só poderia ser redigido por seu conhecimento e detalhamento ímpares! Sério, primeiramente, quero agradecer por mais esse presente que você dedica à série e à nós, fãs ainda (e eternamente) ardorosos da franquia, Parabéns!!! Nenhum outro site ou canal traz a riqueza e aprofundamento crítico que você nos presenteia!
Confesso que por tudo isso, ficaria muito entusiasmado com uma continuação (quando lhe for possível, claro) trazendo a mítica continuação da série com a animação de Hades, o início do mercado dos mangás no Brasil graças à obra e a histórica reestréia em 2003 e todos os produtos e obras que vieram depois….
Relamente concordo com os comentário que isso tudo daria um livro (e essa é uma idéia que há muito tempo sempre aqueceu meu coração, pois a obra e sua história no Brasil, de fato, mereciam ser narrados com toda essa riqueza de detalhes) e pra mim, não há ninguém mais preparado atualmente pra esse trabalho que a sua pessoa… (um futuro projeto via Catarse, talvez? eu compraria e divulgaria muito kkkk)
Ademais, gostaria de compartilhar que meu aniversário é 1º de Setembro e quando completava meus 8 anos de idade na época, me apaixonei pela série e é dispensável que a obra influenciou toda minha vida, inclusive artisticamente (eu desenho e fui muito influenciado pelo traço belíssimo de Shingo Araki) e minha sede por produtos completos (e profundos) sobre a obra nunca foi devidamente saciada… até eu conhecer sua página e suas maravilhosas e generosas traduções… você literalmente realizou um sonho de infância, pois infelizmente não sou suficientemente versado em japonês kkkk
Eu agradeço muitíssimo sua contribuição (inestimável na comunidade BR) e espero que você ainda possa gozar de ainda maior prestígio e reconhecimento da comunidade de fãs, pois você merece, meu amigo cavaleiro! E que os deuses permitam que você ainda tenha muito fôlego para continuar queimando o seu cosmo e transmitindo a mensagem de Seiya para todos os fiéis seguidores, em Nome de Atena!
Grande abraço, guerreiro estelar!
Seus sentimentos me comovem e me honram, amigo. Por causa do tamanho, eu sabia que a matéria encantaria as pessoas que assistiram à série nos anos 90. Eu não quis detalhar a trajetória pós-reestreia porque foi um acontecimento infinitamente menor em importância e tamanho, como você bem sabe. O título que realmente deflagrou a publicação de mangás no formato original por aqui foi Dragon Ball, que vendia 2 vezes mais que Cavaleiros. Podemos argumentar que Dragon Ball estreou por causa de Cavaleiros, mas fatos são fatos. No entanto, vou acatar sua sugestão (a mesma do amigo Bernardo Rose). Farei um adendo com dados da reestreia, dos produtos e da Saga de Hades.
Só fiz justiça à sua árdua e comovente empreitada de nos presentear com tantas matérias, bastidores e raridades da nossa mais amada obra!
E sim, você fez uma ótima e acertiva escolha em retratar os momentos mais marcantes, pois de fato, só quem viveu essa coqueluche dos anos 90 sabe o que foi e você foi a única pessoa que conseguiu aprofundar tão densamente nos motivos e repercussões de todo esse fenômeno (tanto que me fez sentir voltando, por um momento, à 1994)
Realmente, você tem razão quanto aos mangás de Dragon Ball, que apesar de ter sido lançados simultaneamente à CDZ (pelo que me lembro) vendia muito mais que a obra de Kurumada… só acho que nenhuma outra teve (e talvez nunca terá) o fôlego de CDZ para tanto sucesso em reimpressões e versões diversas (inclusive spin-offs e afins derivados)
Sim, 2003 em diante, foi outro momento, uma sobrevida para nós, fãs tão ardentes e sedentos por Athena e talvez por isso que, mesmo sabendo que o momento foi muito menor, ainda temos essa vontade imensurável de continuar devorando tudo que é lançado da obra… Tanto maior é esse sentimento quando escrito por um autor tão eloquente e com tanta riqueza de detalhes quanto sua pessoa…
Mas definitivamente compreendo seus motivos (e concordo), mas reitero que ficarei muito feliz com seus possíveis adendos nessa e em todos os futuros tesouros que nos abrirá num próximo momento (continuarei aguardando ansiosamente)
E por fim… não desconsidere (ao menos pense a respeito), por gentileza, a possibilidade de compilar e ampliar essa linda história em um livro que com certeza, seria uma documentação ímpar dessa linda epopéia que todos os fãs dessa geração viveram e jamais esquecerão! Grade abraço!!!
Acho que só quem viveu aquela época entenderia nossos sentimentos. Após completar a matéria, pensarei em condensá-la num livro. Saber que o artigo tocou seu coração me deixa muito feliz. Espero que você leia e comente as outras matérias e publicações também. Gostaria que partilhasse suas opiniões sobre cada uma delas. Obrigado, amigo.