Texto: Yoshiyuki Suga
Ilustrações: Shingo Araki & Michi Himeno
A violenta batalha nas 12 Casas está terminada, e a turma de Seiya vaga entre a vida e a morte. Um sentimento secreto por Seiya brota no peito de Saori… Mas quem é a pessoa que estilhaça sua paz!?… Uma comovente história extrínseca de amor genuíno, não retratada na TV, que revelará a trajetória entre o fim da Batalha das 12 Casas e Asgard!
Germinação
Todas as chamas incrustadas na torre do relógio de fogo se extinguiram. Infindáveis, apenas as estrelas fulguravam no céu noturno. Como que para curar as chagas dos enfermos, elas iluminavam tenuemente as feridas dos jovens que enfrentaram a Batalha das 12 Casas, a primeira conflagração da história do Santuário. A guerra atroz, que se estendeu por mais de 12 horas, chegou ao fim neste lugar.
Mesmo após os cavaleiros de ouro sobreviventes terem levado Shiryu e os demais para que recebessem tratamento médico, Saori continuava a segurar Pégaso contra o peito. Embora soubesse que, não importava o quanto o chamasse, Seiya já não possuía forças para responder, sem limpar as lágrimas que lhe ensopavam as faces, Saori continuava a entoar o nome de Seiya dentro de seu coração.
— Seiya…
Até hoje, ela decerto chamara por esse nome incontáveis vezes… Quando Saori era uma garota egoísta, antes de despertar para seu destino como Atena, Seiya foi o único a desafiá-la abertamente.
Separado de Seika, sua única parente de sangue no mundo, e submetido a um árduo treinamento como aspirante a cavaleiro, o garoto detestava seu destino, uma sina semelhante à de um inseto à mercê de uma rajada de vento, e provavelmente tentava arremessar com todas as suas forças essa irritação e essa fúria em Saori.
Quanto mais Seiya se opunha a ela, mais Saori o considerava detestável e o maltratava. Mas o fato é que a pequena Saori também já havia percebido…
— Seiya e eu somos parecidos…
No decorrer da vida que levava como a única herdeira da Fundação Graude, uma criação que aparentava ser destituída de qualquer desconforto, Saori era solitária, sem ninguém com quem pudesse abrir seu coração. Mesmo que um grande número de servos e aspirantes a cavaleiro se ajoelhasse diante dela, ela jamais se sentia satisfeita. É que a menina percebia claramente que eles nunca eram autênticos, apenas curvando-se à autoridade de Mitsumasa Kido, o comandante em chefe da Fundação Graude. Por essa razão, a solidão, a irritação, a insegurança e a cólera…
Saori havia descoberto alguém parecido consigo mesma nos olhos de Seiya, que a encaravam fixamente. O fato é que, mesmo enquanto torturava Seiya, ela gritava no fundo do coração.
— Seiya, me diga… o que eu devo fazer?… O que será de mim de agora em diante?… Seiya…
Finalmente, depois que compreendeu seu próprio destino como Atena, Saori veio se devotando a matar a si mesma de forma deliberada.
Seis anos depois que Seiya e os demais garotos se dispersaram pelos 4 cantos do mundo em busca de suas armaduras de bronze, quando os jovens retornavam ao Japão, Saori os submeteu a outra provação, a Guerra Galáctica. Cruelmente, ela agora ordenava que os garotos, que haviam sofrido grandes tribulações apenas para obter suas armaduras de bronze, se digladiassem.
Saori se portava exatamente como uma imperatriz assistindo aos combates dos escravos nos coliseus greco-romanos enquanto se deleitava com vinhos refinados. Pelo menos, não há dúvida de que era vista assim por Seiya e pelos outros cavaleiros.
A expressão facial de Seiya — que crescera ainda mais indomável — indumentado com a armadura de Pégaso exalava a autoconfiança de um cavaleiro adulto, mas os olhos que fitavam Saori certamente continuavam os mesmos. A herdeira da grande fundação engoliu as palavras de louvor a Seiya. Hoje, de que adiantaria ela proferir tais palavras?…
Na verdade, o cosmo de Atena, que despertara no interior do corpo de Saori, sentia claramente que a Guerra Galáctica não passava de um mero prelúdio e que, doravante, Seiya e os demais passariam por lutas extraordinárias…
Desde então, tempos de tormenta transcorreram, e a cizânia entre Saori e os rapazes foi se apagando. À medida que superavam juntos as sucessivas batalhas e provações, esse fosso foi sendo preenchido. Não mais como Saori Kido, e sim como Atena, Saori é protegida por Seiya e os rapazes — que o fazem no papel de cavaleiros de Atena — e também os protege.
— Saori! Atena!
— Seiya!
Para Saori, em certas ocasiões, os sorrisos esporadicamente exibidos por Seiya nos intervalos das batalhas pareciam até mesmo radiantes. É claro, ainda que o gesto fosse direcionado à paz na Terra, simbolizada por Atena, e não à pessoa de Saori Kido, a moça também se alegrava em poder devolver um sorriso do fundo de seu coração.
Quando criança, Saori fizera um apelo íntimo a Seiya, e a resposta demandada viera agora na forma de um meigo sorriso. Sempre que esse terno sentimento irrompia no peito, sem querer, Saori deixava de ser Atena e voltava a ser uma garota. Neste momento, sentindo justamente no peito o calor do rosto de Seiya, que repousava em seu colo como se dormisse totalmente fatigado e ferido, Saori sentia que estava a salvo sem a dor causada pela flecha de ouro disparada por Ptolemeu de Sagitta.
Nada de impingir lutas desumanas aos cavaleiros nem de carregar o pesado fardo de Atena… A jovem pensava em como gostaria de ficar daquele jeito para sempre. O semblante de Saori, que olhava para cima como se apelasse à estátua de Atena, que se erguia ao lado, certamente era o da garota que parecia temer até mesmo o adejo de um passarinho, Saori Kido.
Havia apenas um homem que observava calmamente o estado de espírito de Saori. Era o cavaleiro dourado Mu de Áries…
O Amor de Atena
Na manhã seguinte, vozes que se assemelhavam a um vagalhão furioso destruíram o silêncio e fizeram todo o Santuário tremer. Era o clamor de todo o povo exaltando Atena e celebrando seu advento. Devido à conspiração de Saga de Gêmeos, a identidade da deusa fora envolta num véu de mistérios e, no seio daquela massa, havia aqueles que suspeitavam até mesmo de sua existência, mas agora Atena revelava-se nobre e estonteante aos olhos de todos.
Alegrando-se com o fim da discórdia e o triunfo da justiça, cada uma das pessoas que habitavam o Santuário rezava para que a paz vindoura se estendesse por toda a eternidade e nisso acreditava. Esse era o mesmo sentimento de Saori.
Com efeito, o Santuário, que também pode ser considerado a pedra fundamental deste mundo, tinha se convertido num campo de batalha, e o sangue de muitos companheiros havia sido derramado. Quão grande seria a insegurança e o medo das pessoas?
Mas ninguém percebeu que existia um resquício de turvação no sorriso gentil e reconfortante que Atena dirigia ao povo, com exceção de uma pessoa…
Nos limites do Santuário, dentro de uma densa floresta, uma ermida velha e deserta estava edificada fora das vistas de todos. O lugar era chamado de “Fonte de Atena”, mas não devia seu nome à existência de uma bela fonte. Por milhares e milhares de anos, até mesmo o ar das imediações perpassava a pele com um frescor boreal. Pode-se dizer que, mesmo no Santuário, praticamente ninguém conhece essa morada.
Sendo a UTI (Unidade de Terapia Intensiva) dos guerreiros sagrados, era o lugar onde os 5 cavaleiros de bronze do grupo de Seiya, mortalmente feridos na Batalha das 12 Casas, recebiam cuidados intensivos. No interior dessa floresta verde-escura, revolvendo a barra de um vestido de uma brancura que parecia translúcida, estava a figura de Saori, correndo a passos leves.
Mu se colocou no caminho de Saori. Nesse momento, não passou despercebido ao cavaleiro dourado que, por um instante, veio à tona na fisionomia de Saori um pavor semelhante ao daqueles que cometem um crime, totalmente incompatível com a figura de Atena.
— É natural, não, Mu… que eu, Atena, me preocupe com o estado de Seiya e dos demais, os cavaleiros de Atena?… Por minha causa, eles…
— Quando se é um cavaleiro, ferir-se por Atena é natural. Mesmo que lhe custe a vida, é uma grande satisfação. Você deve saber muito bem disso…
Saori percebeu claramente que Mu viu através de tudo que estava em seu coração. É que Mu sabia que a Saori de agora não era Atena, e sim a garota Saori Kido. Contudo, não importava o quanto a consciência do pecado transparecesse, agora, Saori não era capaz de conter a si mesma.
— Se o pior acontecer, e eu perder o Seiya…
A mera ocorrência desse pensamento sinistro acabara deixando o autocontrole e até mesmo o vestido de seda que a garota trajava mais leves.
— Afaste-se, por favor, Mu!
— É imperdoável que o amor de Atena seja dedicado a apenas um cavaleiro… O amor de Atena deve ser igual para todas as pessoas.
As pernas de Saori, que tentava passar por Mu, ficaram imóveis, exatamente como se estivessem paralisadas.
— O amor de Atena… apenas para um cavaleiro… um…
Saori teve a sensação de que ouvia as fracas palpitações e os gemidos de Hyoga, Shiryu, Shun e Ikki, que lutavam para acender a chama quase moribunda de suas vidas, deitados sem consciência ao lado de Seiya na “Fonte de Atena”, situada bem diante de seus olhos. Não, não eram apenas eles. As figuras dos numerosos cavaleiros que derramaram seu sangue e tombaram por Atena vieram à mente da jovem, apertando seu coração.
Mu lhe contou a origem do nome “Fonte de Atena”. Na era da mitologia, os cavaleiros mortalmente feridos nas frequentes guerras santas eram trazidos a esse retiro. Em consonância com o ditado popular segundo o qual os golpes dos cavaleiros rasgam o céu e rompem a terra, conta-se que mesmo os cavaleiros de bronze possuem ofensivas à velocidade do som, conseguindo disparar mais de 100 golpes por segundo; que os cavaleiros de prata alcançam de 2 a 3 vezes esse valor e que, no caso dos cavaleiros dourados, eles desfecham ataques à velocidade da luz, disparando mais de 100 milhões de golpes por segundo.
Essa simples informação era o bastante para entender que os duelos desses homens eram guerras que desafiavam a imaginação e que os danos recebidos por eles também tinham suas consequências. Após o esfacelamento de seus átomos, a chamada base que forma a matéria, mesmo com o uso da medicina moderna, quantos entre os cavaleiros moribundos poderíamos salvar!?
O fato é que vários cavaleiros feridos se dirigiam a esse encrave no Santuário, sua segunda terra natal, com o propósito de morrer em paz. Mas, nessas horas, uma lágrima caía da estátua de Atena, erigida num aclive remoto, e um cosmo dourado, um maná que irrompia como os oásis que irrigam os desertos áridos, envolvia toda a morada em seu calor. Assim, dizem que, milagrosamente, todos os cavaleiros escapavam da morte.
Saori compreendia tão bem o significado da reprimenda, o sentido do que Mu tentava dizer, que doía-lhe ouvir aquelas palavras. Ao olhar para cima, mesmo em meio a um bosque denso, as sublimes e bondosas feições da estátua de Atena estavam claramente visíveis.
— Você não é mais uma simples garota. Desempenhando o papel de Atena, que voltou à vida no mundo contemporâneo, conspurcado por essa maldade, doravante, você terá de travar batalhas inimagináveis.
Sem encarar Saori sequer uma vez nessa hora, ele lançava um olhar de solene admiração ao céu vazio. Seria essa a prova de que ele reconhecia Saori como Atena e nela acreditava? Ou será que ele tinha um pressentimento catastrófico em relação à Estrela Polar, que emanava uma cosmoenergia ominosa de uma distância longínqua? Não se sabe.
Por fim, após se curvar de forma cortês, a silhueta do Cavaleiro Dourado de Áries foi desaparecendo em direção ao bosque.
De imediato, Saori acatou o conselho de Mu e, para retornar à mansão Kido, deixou o Santuário na companhia de Jabu e Kiki.
— Qual será o significado do amor… de Atena?…
Em contraposição ao coração tremulante de Saori, visto durante o voo, o mar Egeu fulgia em verde-esmeralda a ponto de ofuscar a vista.
O ataque misterioso
Sucederam-se alguns dias à partida de Saori. Por algum motivo desconhecido, desde o período da manhã, até mesmo no Santuário, que não apenas vivenciava uma estação aprazivelmente quente mas parecia se manter embalado no aconchego de um clima perfeito somente para celebrar a chegada de Atena a nosso mundo, um frio invernal se fazia sentir de vez em quando.
Sob cuidados exaustivos na “Fonte de Atena”, sem recuperar a consciência, Seiya e os outros ainda vagavam na fronteira entre a vida e a morte.
— Está dizendo que, da mesma forma que suas armaduras, os corpos dos cinco sucumbiram ao Conflito das 12 Casas?…
A ansiedade de Aiolia de Leão e dos demais cavaleiros dourados irrompeu quando Mu transmitiu a notícia funesta da morte das armaduras de Seiya e de seus amigos.
Certa noite, quando os dois soldados incumbidos de guardar a “Fonte de Atena” se cansaram de falar do frio incomum para a estação e sacudiram seus corpos com um bocejo, seus olhos sonolentos ficaram esbugalhados.
Passando pelas sentinelas, que se tornaram cadáveres sem tempo para sequer gritar “Quem é?!”, as sombras de quatro ou cinco homens correram para adentrar a morada sem nem mesmo emitir o som de seus passos. E, agindo da mesma forma que faziam nas caçadas em seu país natal, coberto pela neve durante o ano todo, ao eliminar sua respiração e inquirir os sinais de vida circundantes, foram capazes de escutar a débil mas indefectível respiração das presas.
— Naquele quarto!
Os assassinos atravessaram um amplo corredor e, sem mostrar um pingo de hesitação, arrombaram a porta a pontapés tão logo se reuniram diante do quarto dos cavaleiros de bronze.
No interior da alcova, a turma de Seiya jazia nas camas.
Uma das cinco camas estava completamente vazia.
— Foi uma batida demasiado rude para visitar doentes, não?
Um dos assassinos se virou e arquejou com surpresa ao avistar de pé, nas trevas do corredor, um homem exatamente igual a um fantasma.
— Quem… é você!?
— Hum, e ainda são os ratos-de-esgoto que se infiltraram no Santuário que querem saber o meu nome… mas que piada!
A energia vital havia desaparecido; o rosto estava encovado, mas um Ikki envolto numa imensa sede de sangue havia surgido da escuridão.
— O… O que você disse?!
Caindo direitinho na provocação, os assassinos saíram no encalço de Ikki, que arrebentou a janela no corredor e pulou para fora do recinto. Se fosse o Ikki habitual, os rivais seriam chacinados com um só golpe.
No entanto, apesar de ter se levantado da cama instintivamente ao sentir que os matadores se aproximavam, Ikki ainda estava tão mortalmente ferido quanto Seiya e os demais. Se a batalha se prolongasse, não há dúvidas de que não apenas ele mas principalmente os indefesos convalescentes se tornariam presas fáceis.
— Isto eu não posso permitir!
Ignorando o fato de seu corpo ferido estar a ponto de urrar de dor devido à elevação de sua própria cosmoenergia, Ikki desfechou seu golpe supremo.
— Ave Fênix!!
Com os olhos arregalados de terror ante a possante e inédita ofensiva flamejante, os malfeitores pereceram.
Nesse momento, um tremor distinto da dor das cicatrizes percorreu o corpo de Ikki. Tratava-se de um sanguinário ar congelante, uma aura tão poderosa que não poderia ser comparada à dos facínoras de antes.
Com uma velocidade que não podia ser acompanhada pelos olhos, a sombra alva que apareceu entre as árvores saltou e desferiu um ataque.
— São movimentos à velocidade da luz, que apenas os cavaleiros dourados deveriam ter! Um golpe à velocidade da luz!
Paralisado e atônito com a poderosa investida congelante, que se aproximava desenhando uma trajetória lívida como se rasgasse a noite escura, Ikki sentiu um frio percorrendo a espinha.
— Neste estado, eu não posso evitar!…
Ainda por cima, ele nem estava protegido por uma armadura.
Sentindo um pavor da morte jamais experimentado, Ikki de fato viu o dono da sombra deixar escapar um sorriso malicioso, de certeza da vitória. Talvez o derradeiro sorriso do deus da morte para recepcionar os mortos possa ser descrito dessa forma.
Fênix teve a impressão de poder ouvir a distante voz de Shun. No instante em que fechou os olhos no intuito de se preparar para morrer, um descomunal ar congelante explodiu no outro lado de suas pálpebras. Por algum motivo, ele sentiu um cosmo gigantesco e reconfortante envolvendo seu corpo.
— Shaka!
Quando Ikki abriu os olhos, Shaka de Virgem estava à sua frente, defendendo-o do golpe glacial.
A sombra branca foi se dissipando na escuridão. A partir do brasão de Odin, encravado nas vestimentas dos assassinos, ficou evidente que eram soldados de Asgard, na Escandinávia.
— Por que soldados de Asgard vieram ao Santuário?…
A dúvida de Shaka era natural. De fato, agora provavelmente era a melhor oportunidade para que forças hostis ao Santuário atacassem. Com o termo da guerra civil desencadeada pela insurreição de Saga, o Santuário fora unificado sob a égide de Atena, mas, de qualquer forma, os dias de paz eram recentes e, neste exato momento, também seria fácil sepultar a turma de Seiya, que demonstrou na Batalha das 12 Casas um poder de luta tão prodigioso que supera até os cavaleiros de ouro.
Shaka de Virgem murmurava como se questionasse a si mesmo:
— Eu ouvi que Hilda, a representante terrena de Odin, o deus de Asgard, é uma pessoa tão benevolente que chega a ser reverenciada e amada até pelos povos das nações vizinhas… Então, por que será?…
Ikki tentou avançar antes que as palavras proferidas por Shaka terminassem.
— Não sei quem diabo é Odin ou Hilda, mas jamais permitirei que façam o que quiserem. Está na hora de receberem minha visita!
— Com o corpo nesse estado, é impossível lutar com os lendários combatentes de Asgard, os guerreiros-deuses. Sem mencionar que, assim como Seiya e os outros cavaleiros de bronze, a sua armadura de Fênix vagueia na fronteira entra a vida e a morte.
— Como é?!
A verdade é que, inclusive no caso da armadura de Fênix, a ave imortal, um traje que sempre volta à vida mesmo que seja desintegrado ou vire cinzas, as asas quebradas ainda não haviam se curado.
Por si só, o confronto com Shaka talvez não deixasse margens para dúvidas.
— Vamos acreditar em Mu, que está encarregado da restauração do seu traje e das outras armaduras, e também no Seiya e nos outros cavaleiros…
Ikki não tinha opção senão anuir às palavras do guarda da sexta casa. Afinal, a superfície da armadura de Shaka, que se supunha ter contido a ofensiva glacial de agora há pouco, virara uma pedra de gelo esbranquiçada, como se tivesse sido horrivelmente calcinada. A mesma armadura de Virgem que permaneceu incólume diante dos golpes mais poderosos de Ikki…
— Aquela sombra branca… Será que aquele homem é um guerreiro-deus, um legendário combatente de Asgard?…
Num estado de estupefação gradual, Ikki teve a sensação de ver um brilho agourento nas sete estrelas da Ursa Maior, posicionadas de tal maneira que pareciam proteger a Estrela Polar. Fênix só viria a saber que o guerreiro-deus que o atacou era Bado [Bud] de Alcor, a Estrela Zeta, depois de vários meses.
As lágrimas de Atena
O fim da Batalha das 12 Casas estava para completar uma semana. Preocupados com Saori, que, sem sinal da notícia da recuperação dos cavaleiros, ficava frequentemente confinada em seu quarto, amigos como Tatsumi e Jabu apareciam para dar uma olhada no quarto de vez em quando, mas Saori apenas correspondia com um sorriso que parecia quebrado, como numa arte vítrea.
Desde aquele dia, Saori se recordava incessantemente das palavras de Mu: “É imperdoável que o amor de Atena seja dedicado a apenas um cavaleiro… O amor de Atena deve ser igual para todas as pessoas”.
Contudo, ironicamente, as palavras do cavaleiro dourado a fizeram atinar com o fato de que havia começado a amar esse único cavaleiro. Saori orava do fundo do coração pela cura de todos os cavaleiros, e não apenas de um.
Ainda assim, quanto mais a jovem rezava, mais as palavras de Mu pesavam em seus ombros frágeis.
— O verdadeiro amor de Atena significa… que Atena não pode amar as pessoas?…
O destino imposto a Saori lhe parecia uma cruz excessivamente pesada. E foi essa Saori que Kiki levou consigo ao jardim.
— Se a maninha não se animar, Seiya e os rapazes também não vão melhorar, não importa quanto tempo passe. Olhe só!
Dependurando-se no galho de um grande pinheiro das redondezas, Kiki fez inúmeras revoluções num arremedo de barra horizontal e, embora esperasse finalizar o movimento com uma esplêndida aterrissagem, caiu esplendidamente de bunda no chão.
— Argh, é por causa desse tipo de coisa que sempre serei chamado de Kiki de Apêndice…
Esses suspiros exagerados de lamentação extraíam sorrisos de Saori. O fato é que, à sua maneira, Kiki fazia tudo que podia para animá-la.
Enquanto se deliciava com a visão de Kiki recostado no tronco do pinheiro com o traseiro no chão, reminiscências distantes se avivaram em Saori. Nos tempos em que a ainda pequenina turma de Seiya era submetida a um rigoroso treinamento nesta mesma mansão Kido, sempre que desaparecia, Seiya certamente podia ser encontrado sob esta árvore.
Os galhos, que conservavam um sem-número de folhas no decorrer das 4 estações, faziam sombra até a altura da base mesmo nos dias de sol escaldante, e o barulho da folhagem que a confortável brisa levantava deve ter consolado o coração empedernido de Seiya vez ou outra. A bem da verdade, mesmo criança, Seiya provavelmente desejava viver livremente, como esta árvore, que estendia seus galhos em direção ao céu a seu bel-prazer.
Certo dia, Seiya e os demais garotos ficaram sem comer um dia todo como se o erro cometido por um dos aspirantes a cavaleiro fosse responsabilidade de todos. Nessa ocasião, o faminto Seiya estava sob o pinheiro.
— Levante-se, Seiya!
Saori ofereceu ao menino um sanduíche maravilhoso, um lanche do tipo que ele jamais vira na vida, repleto de presunto carnudo. Nem mesmo a garota entendia muito bem o que a levava a fazer tal coisa.
No entanto, a despeito das inúmeras vezes que a menina ofertou a iguaria, sem nenhum ímpeto de esticar o braço, Seiya se virou para o outro lado.
— Eu disse para se levantar, Seiya!
— Eu não sou seu cachorro de estimação!
— Seiya!
Em sua frustração, Saori olhou fixamente para Seiya. Mas, como num solilóquio, o garoto, que sentiu uma sombra solitária nas pupilas da pequena tirana, balbuciou, com o rosto voltado rudemente para o outro lado:
— Eu não posso comer sozinho. Da mesma forma que eu, o Shiryu, o Shun e os outros também estão morrendo de fome. Ainda assim, você só oferece a mim…
— Seiya, seu idiota! Se não precisa, vou lhe dar desta forma!
Jogando o sanduíche aos pés de Seiya, Saori foi embora a passos rápidos, sem nem olhar para trás. Na verdade, ela sentia que, se se virasse, as pupilas preenchidas com um sentimento ardente acabariam sendo vistas por Seiya.
Hoje, mesmo que conseguisse transmitir o que sentia — não como Atena, mas como uma garota —, Seiya certamente diria a mesma coisa:
— Só para mim… Só para mim…
Entretanto, hoje ela havia compreendido claramente o significado do sentimento que a tomou naquele momento.
— É justamente por Seiya ser desse jeito que eu…
Com esforço, Saori represou a continuação de suas palavras. Afinal, Seiya não foi o único. Gravemente feridos para salvar a vida da jovem, Shiryu e os outros também estavam entre a vida e a morte neste momento, lutando com todas as suas forças na “Fonte de Atena”…
— O que foi, maninha?…
Voltando a si ao ser chamada por um Kiki que a observava com ares de preocupação, Saori não teve outra opção além de dar um largo sorriso para acalmar o garoto.
— Não, não é nada, Kiki. Vamos. Já está na hora de voltarmos.
Nesse instante, Saori não tinha se dado conta de que, ao receber uma rajada de vento que continha uma poderosa cosmoenergia, as flores que haviam desabrochado plenamente em um canto do jardim foram congeladas numa fração de segundo, exatamente como flores secas. Então…
— Senhorita! Aconteceu algo terrível!!
Tatsumi, que havia mudado de cor, e os cavaleiros de bronze capitaneados por Jabu vieram correndo, transmitindo a Saori uma notícia urgente do Santuário: Aldebarã de Touro havia sido derrotado por alguém.
— Um homem como Touro foi vencido com apenas um golpe…
Ainda que a turma de Seiya seja uma exceção, valendo-se do senso comum, ninguém além de um cavaleiro de ouro pode derrotar um cavaleiro de ouro.
Todavia, nem mesmo a ofensiva à velocidade da luz de Aiolia de Leão seria capaz de liquidar Aldebarã com apenas um golpe.
— Mas quem diabo… — enquanto Jabu murmurava, um incrível ar frio perpassou as roupas, penetrando as peles de todos.
— Você é Atena, não é mesmo?
Em meio a uma rajada de gelo, envergando um tipo de armadura desconhecido (veste divina), havia um homem com um joelho no chão e a cabeça abaixada em reverência.
Porém, dirigindo seus olhos frígidos e lancinantes a Saori, um olhar que parecia transfixar o que mirava, esse homem se apresentou como um guerreiro-deus de Asgard: Shido [Syd] de Mizar, a Estrela Zeta.
O algoz de Aldebarã não era outro senão o próprio Shido, e foi um golpe assustador, um atentado equivalente a uma declaração de guerra de Asgard contra o Santuário.
— Você é a próxima, Atena. É a sua vez…
Audaz, desta vez o guerreiro-deus marchou na direção de Atena como um sicário.
Convertendo sua fúria num golpe, Jabu investiu contra Shido:
— Cale a boca! Eu protegerei a senhorita!
— Tome isto!
Jabu foi seguido por Geki, Ichi, Nachi e Ban.
— Pobres-diabos não têm utilidade para mim!
O lutador setentrional executou apenas um leve floreio com uma das mãos, e um golpe congelante idêntico às garras de um tigre separou o solo em várias faixas, varrendo Jabu e as outras vítimas da rajada como folhas.
Fazendo das tripas coração, Jabu se reergueu, mas a vitória e a derrota já estavam evidentes aos olhos de todos.
— Pff, se quer tanto morrer, deve ir para o mundo dos mortos na frente a fim de receber Atena!
No momento em que Shido estava para desfechar o ataque que venceu Aldebarã com apenas um golpe, as Garras do Tigre Viking, uma corrente chegou cortando os céus, evitando sua ofensiva.
— Quem é!?
Enquanto tensionava a corrente enrolada em seu braço, o guerreiro-deus duvidou de seus olhos diante da visão de um rapaz, um garoto tão formoso quanto uma menina, em guarda no meio do bosque.
— Shun de Andrômeda!
Era Shun, que envergava uma armadura de bronze totalmente nova.
Na continuação…
— Você tem muita coragem para vir tirar a vida de Atena sozinho! Mas não permitirei que encoste um só dedo em Saori!
Cortando o espaço num salto do teto da mansão Kido, que se elevava muito acima de todos, Pégaso se colocou diante de Saori.
— Seiya!…
Saori ficou maravilhada com a figura de Seiya, que, da mesma forma que Shun, tinha seu corpo revestido pela ressurrecta armadura de Pégaso.
A perplexidade da garota era natural. Afinal, até poucos dias atrás, tanto Seiya quanto Shun erravam entre a vida e a morte. Mesmo supondo que escapariam da morte, não causaria espanto que essa recuperação levasse, na menor das hipóteses, vários meses.
— Só para que a senhorita saiba, não somos fantasmas. Ao que parece, Enma-Daiō não gostou de nós.
Lendo as feições de Saori, Seiya deu uma risadinha com a traquinagem.
Tamanho sangue-frio exulcerou o orgulho do guerreiro mais forte de Asgard, acendendo seu espírito de luta.
— Você é Pégaso… Muito bem! É melhor gravar bem na sua memória o que podem os cavaleiros de Atena quando comparados aos guerreiros-deuses de Asgard!
Após se desvencilhar das correntes de Shun, Shido correu em direção ao bosque como se instasse Pégaso a persegui-lo.
Diminuindo a distância num só fôlego, Seiya disparou um golpe com todas as suas forças.
— Tome isto!
Tanto a velocidade quanto o poder de seus golpes haviam aumentado em relação ao que eram no passado. As feridas de seu corpo ainda não estavam completamente curadas, mas as lutas atrozes na Batalha das 12 Casas tinham feito com que seu cosmo crescesse dramaticamente.
Entretanto, o adversário também respondeu com movimentos e golpes comparáveis aos dos cavaleiros dourados. O padrão de seu ataque parecia idêntico ao do homem que havia atacado Ikki alguns dias antes, mas, àquela altura, nem mesmo o próprio Shido tinha ideia da existência daquele homem das sombras.
— Isto é um guerreiro-deus de Asgard… E, ainda por cima, esta tremenda cosmoenergia glacial!…
Embora a ofensiva congelante só o tivesse tocado muito sutilmente, Seiya sentiu que ela perpassou a nova armadura, congelando-o até à medula.
Pégaso finalmente desferiu seu golpe mais forte.
— Meteoro de Pégaso!!
Simultaneamente, o guerreiro-deus também disparou um golpe tenebroso.
— Garras do Tigre Viking!!
Um número incontável de meteoros e as garras do tigre se cruzaram, arremessando os dois contendores para longe.
As incisivas ranhuras de gelo encravadas na nova armadura de Seiya foram o suficiente para mostrar o terror de Shido.
— Se este golpe tivesse sido direcionado a Atena, à Saori…
Levantando-se prontamente e envolvido num cosmo que queimava ainda mais forte, Seiya entrou em guarda novamente.
— Shido de Mizar, com isto, acertarei as contas!
— É exatamente o que eu esperava!
Ficou claro que o cosmo congelante em volta de Shido também se elevara ao máximo.
— Desta vez, se golpearmos um ao outro, um de nós vai morrer.
No momento da súbita clarividência de Pégaso, que passou por intermináveis derramamentos de sangue…
— Espere, Seiya!
A voz pungente de Ikki, que havia dado as caras, conteve Seiya.
— Por que, Ikki?! Esse sujeito veio para tirar a vida de Saori…
— Enquanto existirem os cavaleiros de Atena, a vida da deusa não será algo que possa ser tirado tão facilmente…
As palavras de Ikki não foram direcionadas a Seiya, mas a Shido.
— Nós, que uma vez vagamos pelo abismo da morte, não podemos desperdiçar esta vida!
— Nem mesmo por uma nova batalha, Seiya!
Ocultando um violento espírito de luta, Shiryu e Hyoga, que surgiram em seguida, também coagiam o assassino enquanto falavam ao amigo.
— Muito bem… O dia em que nós guerreiros-deuses e vocês vamos acertar as contas certamente chegará! Mal posso esperar por este momento, Seiya de Pégaso!
O ar congelante que ainda impregnava a atmosfera foi sendo levado pelo vento à medida que Shido partia.
— Ugh…
Quando a tensão amainou, Seiya gemeu ao sentir, através de sua armadura, o impacto causado pela ofensiva de Shido.
— Seiya!
Surpreendentemente, Seiya respondeu à aparente aflição de Saori, que veio correndo ao seu encontro, com um sorriso radiante.
— Está tudo bem, Saori. Mas não sei o que teria sido de mim sem esta nova armadura de Pégaso… Foi graças ao Mu e aos outros cavaleiros de ouro…
— Mu e os outros…
Saori foi informada de que as armaduras de bronze dos rapazes voltaram à vida graças ao sangue de Mu e dos outros cavaleiros dourados.
Dizem que a perda de um terço do sangue geralmente acarreta a morte dos seres humanos. Contudo, sacrificando metade de seu sangue, os cavaleiros de ouro realmente apostaram sua própria existência ao infundir um novo sopro de vida nas armaduras mortas da turma de Seiya. Para reviver as armaduras dos oponentes com os quais tinham acabado de trocar golpes à custa de suas vidas nas Doze Casas…
Saori sentiu seu coração ser fortemente tocado. O reconfortante “amor” de Mu e dos cavaleiros dourados… e a turma de Seiya, que, graças a um cosmo indomável, regressou das portas da morte como se correspondesse a esse sentimento…
— Em contrapartida, o que eu, que sou Atena, pude fazer por Seiya e pelos demais?…
Mesmo se enchendo de sentimento de culpa, Saori agora conseguia compreender claramente o significado da “Fonte de Atena”, da qual Mu havia falado. Não é que o Cavaleiro de Áries a tenha proibido de amar um cavaleiro. Afinal, para alguém que não é capaz de amar um ser humano, seria ainda mais impossível amar várias pessoas, não é verdade?
No entanto, assim como a luz do sol que ilumina esta Terra, as lágrimas da estátua de Atena, que dizem ter salvado os cavaleiros feridos, são reconfortantemente igualitárias. Seria fácil Saori viver como uma garota. Mas, conquanto sejam garotos, Seiya e os outros também se esforçam para levar a vida sob o cruel destino que lhes foi dado.
Saori já não tinha dúvidas. Agora, o que a turma de Seiya precisa é da força imparcial e grandiosa de um amor infinito, o amor de Atena.
Enquanto estendia a mão a Seiya, que tinha os joelhos no chão, ela se dirigiu aos cavaleiros dourados no distante Santuário:
— Obrigada, Mu, cavaleiros de ouro. Eu juro que também me esforçarei. Para fazer jus a vocês, acalentarei um amor magnânimo, do tipo que envolve as pessoas…
— Saori?…
Na palma da mão de Seiya, que tentava sondar a jovem com os olhos, as lágrimas de Saori se derramaram. Num piscar de olhos, ficou nítido que uma cálida energia vital inundava todo o corpo de Seiya.
Então, exatamente como a estátua de Atena a zelar por Seiya e todos os cavaleiros, aflorou nos lábios de Saori um sorriso de resplandecência nobre e graciosa.